terça-feira, 8 de abril de 2008

Representações recentes do panorama contemporâneo da cinematografia documentária brasileira, os filmes Estamira (Marcos Prado, 2006) e Moacir Arte Bruta (Walter Carvalho, 2006) apresentam condições que os conectam como objetos de estudo desta análise: cada narrativa trata de um corpo social pertencente às relações sociais com indicativos patológicos e multidimensionais de sobrevivência em cotidianos desenhados por exclusões.





Estamira é mulher, negra, carregada de experiências traumáticas trazidas no decorrer da vida como estupros e visitas a manicômios. Viveu uma vida de abandonos e exploração no convívio familiar. Trabalha como catadora no lixão de Jardim Gramacho, no município de Duque de Caxias, no Rio de Janeiro, de onde o cineasta Marcos Prado, em 2000, seis anos depois de ter feito um trabalho fotográfico de pesquisa naquele espaço, observou os discursos desconcertantes de Estamira sobre as mazelas do mundo, às vezes esbravejados em dialeto próprio, em meio à putrefação dos dejetos urbanos da cidade carioca. Estamira diz a Marcos que tem uma missão na vida: “revelar e cobrar a verdade”[1]. Diz ainda que a missão de Marcos é revelar a missão de “Estamira”, como ela costuma referir-se a si mesma. Em 2005, o lixão foi transformado em aterro sanitário por um projeto iniciado após a ECO 92, e de lá tiveram de sair Estamira e seus companheiros, “todos excluídos da sociedade: ex-traficantes, ex-presidiários, ex-domésticas, ex-trabalhadores, velhos e jovens desempregados”[2].





Moacir é um homem negro, analfabeto, com deficiência óssea congênita, o que se reflete na fala e na audição. Desde criança convive com visões exclusivas de seres eróticos, satânicos e com aspectos de monstruosidade. Mora ao lado da família – pessoas que vivem e sobrevivem a modos de subsistência dentro da comunidade de São Jorge, no município de Alto Paraíso, na Chapada dos Veadeiros, em Goiás – que revela ao cineasta Walter Carvalho diversas interpretações a respeito dos desenhos e pinturas de Moacir, registrados nas paredes de dentro e de fora da sua casa. As pinturas são projeções das visões particulares de Moacir, e também geram interpretações polêmicas na comunidade. Walter Carvalho conheceu Moacir em São Jorge quinze anos antes de retornar ao lugar para realizar o documentário; da primeira vez, o cineasta registrou Moacir numa fotografia tirada na frente de sua primeira casa, feita de palha, construída pelo próprio morador. A foto parece retratar um Moacir sem intimidade com o universo através do qual foi captado. Hoje em dia, Moacir projeta em suas pinturas referências externas como automóveis e helicópteros, em meio às genitálias, cabeças de bicho e “capetins”[3] de suas visões. Com o rosto pintado e sobre uma bicicleta, Moacir faz performances de propaganda de suas obras pela comunidade, bastante procuradas pelos turistas que chegam naquela região.

Os filmes centrados na vida destes dois corpos sociais trazem configurações da contemporaneidade brasileira em dois aspectos: no aspecto social, considerando as personas sociais, Estamira e Moacir, representificações do real de uma sociedade classificada de "Terceiro Mundo", vítima de uma história de exclusão sob os olhares vigilantes da opressão, da exploração e de um ideal de seletividade humana que começa a definir o pensamento dominante na América e na Europa, a partir dos expansionismos coloniais e industriais, formadores da era moderna; e no aspecto cinematográfico, o que há para análise são dois documentários marcados por dispositivos na linguagem que imprimem as características pós-estruturalistas das produções do gênero: a transdisciplinaridade[4] como método do “olhar” objetivo sobre o “outro”, e a subjetividade como qualidade deste “olhar” objetivo sobre o “outro”, ou seja, a valorização da pluralidade narrativa pela complexidade do real.

É preciso compreender o que esta pesquisa entende por narrativa, diferenciando este tipo de análise de uma análise de gênero.

Durante a construção desta pesquisa, os estudos sobre antropologia visual, cinema etnográfico, cinema sociológico e cinema documentário serviram fundamentalmente no sentido de enriquecer o diálogo sobre a narrativa dos filmes aqui propostos, ao contrário de fechar os raciocínios às discussões relativas a gênero e nomenclatura. Tal proposição parte de uma lógica pós-modernista e pós-estruturalista que rompe com padrões e regras estabelecidas para a obtenção de um real absoluto, tanto no que se refere às artes quanto às ciências, em seus discursos práticos e teóricos.

A narrativa é compreendida neste trabalho como um dispositivo metodológico e criativo de “interpretação e de confrontação”[5] do cineasta sobre o objeto observado, e a análise parte para verificar as dimensões objetivas e subjetivas do processo criativo de representificação[6] do outro, partindo do pressuposto de que tal processo seja estabelecido pela reciprocidade intencional nas relações diretas e indiretas entre observador e observado. A escolha do termo representificação na abordagem da pesquisa, portanto, reforça o entendimento aqui tratado sobre o discurso narrativo, como melhor esclarece o sociólogo de arte e cinema Paulo Menezes:
O conceito de representificação realça o caráter construtivo do filme, pois nos coloca em presença de relações mais do que na presença de fatos e coisas. Relações constituídas pela história do filme, entre o que ele mostra e o que ele esconde. Relações constituídas com a história do filme, articulação de espaços e tempos, articulação de imagens, sons, diálogos e ruídos. Pensar o cinema como representificação significa poder pensar a sessão de cinema como acontecimento (...)[7]

A antropóloga Clarice Peixoto, em um de seus discursos promovidos à luz dos debates do Fórum de Cinema e Antropologia, na 1ª Mostra Internacional do Filme Etnográfico, em 1993, no Rio de Janeiro[8], fala da deficiência dos debates sobre a especificidade da antropologia visual, por girarem “sempre em torno de definições imprecisas, tipologias ilusórias e pouco operacionais, como se fosse absolutamente necessário definir um caminho único para a exploração audiovisual”[9]. Francisco Elinaldo Teixeira, por exemplo, prefere utilizar “o composto forma-documentário como uma esquiva da noção de gênero”[10]. Em outros casos de estudo, fala-se sobre a existência de uma forma anti-documentária[11] do filme sociológico, caracterizada por compostos inventivos de interação com o objeto observado, onde “o filme se torna ele mesmo um acontecimento, ao mesmo tempo em que o assunto se torna mais ou menos indeterminado, misterioso, um processo aberto, um diálogo, um discurso indireto, livre, polifônico, que faz com que o outro se crie à medida que o filme se faz”.[12]

De fato, o que é consensual nas relações entre documentário cinematográfico e ciências humanas é a necessidade de uma metodologia de observação do outro, e “a linguagem, seja no cinema, seja na antropologia, é uma questão de método: como mostrar o outro sem o reduzir a um objeto, ou melhor, como mostrar o outro preservando aquilo que ele tem de mais interessante: a sua diferença, a sua radical ‘alteridade’?”[13]

Os recortes analíticos nesta pesquisa partem do diálogo entre teorias sobre a sistematização disciplinar da condição humana e as estruturas sociais; sobre o processo criativo como experiência vital da condição multidimensional do corpo e do pensamento humano, e sobre a anatomia do corpo social excluído na formação sócio-cultural brasileira e ocidental. A conjunção dessas teorias parte da idéia de que a todas elas corresponde a questão do olhar metodológico na ordenação de suas respectivas experiências. E é nesta questão que a mesma conjunção de teorias se relaciona a esta análise de narrativa documentária; a narrativa como fim da experiência do outro através do olhar criativo e objetivo do cineasta, que observa, interpreta, confronta, intui e ordena.

Numa época em que a ciência caminha desenfreada para o aprimoramento das tecnologias do conhecimento e das relações sociais, paradoxalmente a um patamar crescente dos processos de reducionismo cultural, e de seletividade humana e da natureza como um todo, o corpo social nunca foi um território tão pertencente a um sistema político, econômico e cultural que o transforma em produto fabricado com meios e fins exclusivamente determinados para o fortalecimento desse sistema, em detrimento da liberdade existencial e social de cada indivíduo. Adventos como a patente genética, por exemplo, desafiador das leis da evolução natural e da biodiversidade, é resultante de um processo histórico do desenvolvimento humano dominado por crenças raciais, sexistas e econômicas de um ideal excludente de sociedade.

Analisar neste projeto as narrativas destes filmes refletindo sobre processos sociais e dramatúrgicos de interpretação e confrontação; sobre formas excludentes do pensamento humano e da sociedade, e sobre o olhar criativo multidimensional na busca por compreensões acerca da condição humana é contribuir para um diálogo propositivo de transformação de modelos pré-fabricados de visão, tanto nas ciências e na sociedade quanto no cinema e nas artes, de um modo geral. O jurista Alcides Pedro Sabbi diz que “descrever a realidade por fora, por cima, à distância, através de tipos abstratos, clichês, estereótipos, é próprio da pedagogia do conservador”[14]. Afirma ainda que “não transformadas por dentro, as formas tendem a esvaziar-se, resultando meros invólucros, preservados por si mesmos, e disfuncionais em relação à realidade.”[15]

É possível que os filmes Estamira e Moacir Arte Bruta estejam inseridos nessa pedagogia conservadora, tratando de tipos estereótipos em condições de exclusão social sem qualquer propósito junto à realidade? Ou que multidimensionam a visão do telespectador para além desses clichês, encontrando na dialética contemporânea da narrativa cinematográfica documentária novos tempos, espaços e corpos representificadores do real, novas maneiras de lidar com o mundo que existe além do visível, além da condição cristalizada do pensamento social? São respostas às quais este trabalho chega, não fazendo delas afirmações fechadas, finitas. Mas abrindo-as para possibilidades maiores de compreensão e de construção de uma dramaturgia do cinema documentário antropológico fiel à condição humana.


Esta pesquisa foi orientada por Gabriela Lirio Gurgel.
_______________________________________________

[1] PRADO, Marcos. Histórias do Jardim Gramacho: além do fato/lixão. 31/07/2005, disponível em: http://jbonline.terra.com.br/jb/papel/cidade/2005/07/30/jorcid20050730004.html .
[2] Id., Ibid.
[3] É como Moacir se refere às figuras diabólicas que desenha.
[4] O termo transdisciplinaridade abrange um significado mais amplo acerca da apreensão múltipla, não-linear e integrada do real e do conhecimento, não sendo algo intrínseco às novas tendências do cinema documentário; apenas, aqui, utilizo o termo para integrar o cinema documentário neste contexto.
[5] PEIXOTO, Clarice in: MONTE-MÓR, Patrícia e PARENTE, José Inácio (org.). Cinema e Antropologia: Horizontes e Caminhos da Antropologia Visual. Rio de Janeiro, Interior Produções, 1993, p. 12.
[6] MENEZES, Paulo. Representificação: As relações (im)possíveis entre cinema documental e conhecimento. RBCS vol. 18, nº 51, fevereiro/ 2003.
[7] Id., Ibid., p. 94.
[8] O evento aconteceu no Centro Cultural Banco do Brasil, e os registros dos debates e seminários resultou no livro organizado por MONTE-MÓR e PARENTE (Id.,Ibid).
[9] PEIXOTO, Clarice in: MONTE-MÓR, Patrícia e PARENTE, José Inácio (org.). Cinema e Antropologia: Horizontes e Caminhos da Antropologia Visual. Rio de Janeiro, Interior Produções, 1993, p.12.
[10] TEIXEIRA, Francisco Elinaldo. Eu é outro: documentário e narrativa indireta livre in: Documentário no Brasil: tradição e transformação / Francisco Elinaldo Teixeira (org.). – São Paulo: Summus, 2004, p.47.
[11] Id.,Ibid.
[12] PARENTE, André in: MONTE-MÓR, Patrícia e PARENTE, José Inácio (org.). Cinema e Antropologia: Horizontes e Caminhos da Antropologia Visual. Rio de Janeiro, Interior Produções, 1993, p. 52-53.
[13] Id.,Ibid., p. 51.
[14] SABBI, Alcides Pedro. Agética da repressão reagética da liberdade. São Paulo: Ícone, 1986, p.28.
[15] Id.,Ibid.

Nenhum comentário: