terça-feira, 8 de abril de 2008

Representações recentes do panorama contemporâneo da cinematografia documentária brasileira, os filmes Estamira (Marcos Prado, 2006) e Moacir Arte Bruta (Walter Carvalho, 2006) apresentam condições que os conectam como objetos de estudo desta análise: cada narrativa trata de um corpo social pertencente às relações sociais com indicativos patológicos e multidimensionais de sobrevivência em cotidianos desenhados por exclusões.





Estamira é mulher, negra, carregada de experiências traumáticas trazidas no decorrer da vida como estupros e visitas a manicômios. Viveu uma vida de abandonos e exploração no convívio familiar. Trabalha como catadora no lixão de Jardim Gramacho, no município de Duque de Caxias, no Rio de Janeiro, de onde o cineasta Marcos Prado, em 2000, seis anos depois de ter feito um trabalho fotográfico de pesquisa naquele espaço, observou os discursos desconcertantes de Estamira sobre as mazelas do mundo, às vezes esbravejados em dialeto próprio, em meio à putrefação dos dejetos urbanos da cidade carioca. Estamira diz a Marcos que tem uma missão na vida: “revelar e cobrar a verdade”[1]. Diz ainda que a missão de Marcos é revelar a missão de “Estamira”, como ela costuma referir-se a si mesma. Em 2005, o lixão foi transformado em aterro sanitário por um projeto iniciado após a ECO 92, e de lá tiveram de sair Estamira e seus companheiros, “todos excluídos da sociedade: ex-traficantes, ex-presidiários, ex-domésticas, ex-trabalhadores, velhos e jovens desempregados”[2].





Moacir é um homem negro, analfabeto, com deficiência óssea congênita, o que se reflete na fala e na audição. Desde criança convive com visões exclusivas de seres eróticos, satânicos e com aspectos de monstruosidade. Mora ao lado da família – pessoas que vivem e sobrevivem a modos de subsistência dentro da comunidade de São Jorge, no município de Alto Paraíso, na Chapada dos Veadeiros, em Goiás – que revela ao cineasta Walter Carvalho diversas interpretações a respeito dos desenhos e pinturas de Moacir, registrados nas paredes de dentro e de fora da sua casa. As pinturas são projeções das visões particulares de Moacir, e também geram interpretações polêmicas na comunidade. Walter Carvalho conheceu Moacir em São Jorge quinze anos antes de retornar ao lugar para realizar o documentário; da primeira vez, o cineasta registrou Moacir numa fotografia tirada na frente de sua primeira casa, feita de palha, construída pelo próprio morador. A foto parece retratar um Moacir sem intimidade com o universo através do qual foi captado. Hoje em dia, Moacir projeta em suas pinturas referências externas como automóveis e helicópteros, em meio às genitálias, cabeças de bicho e “capetins”[3] de suas visões. Com o rosto pintado e sobre uma bicicleta, Moacir faz performances de propaganda de suas obras pela comunidade, bastante procuradas pelos turistas que chegam naquela região.

Os filmes centrados na vida destes dois corpos sociais trazem configurações da contemporaneidade brasileira em dois aspectos: no aspecto social, considerando as personas sociais, Estamira e Moacir, representificações do real de uma sociedade classificada de "Terceiro Mundo", vítima de uma história de exclusão sob os olhares vigilantes da opressão, da exploração e de um ideal de seletividade humana que começa a definir o pensamento dominante na América e na Europa, a partir dos expansionismos coloniais e industriais, formadores da era moderna; e no aspecto cinematográfico, o que há para análise são dois documentários marcados por dispositivos na linguagem que imprimem as características pós-estruturalistas das produções do gênero: a transdisciplinaridade[4] como método do “olhar” objetivo sobre o “outro”, e a subjetividade como qualidade deste “olhar” objetivo sobre o “outro”, ou seja, a valorização da pluralidade narrativa pela complexidade do real.

É preciso compreender o que esta pesquisa entende por narrativa, diferenciando este tipo de análise de uma análise de gênero.

Durante a construção desta pesquisa, os estudos sobre antropologia visual, cinema etnográfico, cinema sociológico e cinema documentário serviram fundamentalmente no sentido de enriquecer o diálogo sobre a narrativa dos filmes aqui propostos, ao contrário de fechar os raciocínios às discussões relativas a gênero e nomenclatura. Tal proposição parte de uma lógica pós-modernista e pós-estruturalista que rompe com padrões e regras estabelecidas para a obtenção de um real absoluto, tanto no que se refere às artes quanto às ciências, em seus discursos práticos e teóricos.

A narrativa é compreendida neste trabalho como um dispositivo metodológico e criativo de “interpretação e de confrontação”[5] do cineasta sobre o objeto observado, e a análise parte para verificar as dimensões objetivas e subjetivas do processo criativo de representificação[6] do outro, partindo do pressuposto de que tal processo seja estabelecido pela reciprocidade intencional nas relações diretas e indiretas entre observador e observado. A escolha do termo representificação na abordagem da pesquisa, portanto, reforça o entendimento aqui tratado sobre o discurso narrativo, como melhor esclarece o sociólogo de arte e cinema Paulo Menezes:
O conceito de representificação realça o caráter construtivo do filme, pois nos coloca em presença de relações mais do que na presença de fatos e coisas. Relações constituídas pela história do filme, entre o que ele mostra e o que ele esconde. Relações constituídas com a história do filme, articulação de espaços e tempos, articulação de imagens, sons, diálogos e ruídos. Pensar o cinema como representificação significa poder pensar a sessão de cinema como acontecimento (...)[7]

A antropóloga Clarice Peixoto, em um de seus discursos promovidos à luz dos debates do Fórum de Cinema e Antropologia, na 1ª Mostra Internacional do Filme Etnográfico, em 1993, no Rio de Janeiro[8], fala da deficiência dos debates sobre a especificidade da antropologia visual, por girarem “sempre em torno de definições imprecisas, tipologias ilusórias e pouco operacionais, como se fosse absolutamente necessário definir um caminho único para a exploração audiovisual”[9]. Francisco Elinaldo Teixeira, por exemplo, prefere utilizar “o composto forma-documentário como uma esquiva da noção de gênero”[10]. Em outros casos de estudo, fala-se sobre a existência de uma forma anti-documentária[11] do filme sociológico, caracterizada por compostos inventivos de interação com o objeto observado, onde “o filme se torna ele mesmo um acontecimento, ao mesmo tempo em que o assunto se torna mais ou menos indeterminado, misterioso, um processo aberto, um diálogo, um discurso indireto, livre, polifônico, que faz com que o outro se crie à medida que o filme se faz”.[12]

De fato, o que é consensual nas relações entre documentário cinematográfico e ciências humanas é a necessidade de uma metodologia de observação do outro, e “a linguagem, seja no cinema, seja na antropologia, é uma questão de método: como mostrar o outro sem o reduzir a um objeto, ou melhor, como mostrar o outro preservando aquilo que ele tem de mais interessante: a sua diferença, a sua radical ‘alteridade’?”[13]

Os recortes analíticos nesta pesquisa partem do diálogo entre teorias sobre a sistematização disciplinar da condição humana e as estruturas sociais; sobre o processo criativo como experiência vital da condição multidimensional do corpo e do pensamento humano, e sobre a anatomia do corpo social excluído na formação sócio-cultural brasileira e ocidental. A conjunção dessas teorias parte da idéia de que a todas elas corresponde a questão do olhar metodológico na ordenação de suas respectivas experiências. E é nesta questão que a mesma conjunção de teorias se relaciona a esta análise de narrativa documentária; a narrativa como fim da experiência do outro através do olhar criativo e objetivo do cineasta, que observa, interpreta, confronta, intui e ordena.

Numa época em que a ciência caminha desenfreada para o aprimoramento das tecnologias do conhecimento e das relações sociais, paradoxalmente a um patamar crescente dos processos de reducionismo cultural, e de seletividade humana e da natureza como um todo, o corpo social nunca foi um território tão pertencente a um sistema político, econômico e cultural que o transforma em produto fabricado com meios e fins exclusivamente determinados para o fortalecimento desse sistema, em detrimento da liberdade existencial e social de cada indivíduo. Adventos como a patente genética, por exemplo, desafiador das leis da evolução natural e da biodiversidade, é resultante de um processo histórico do desenvolvimento humano dominado por crenças raciais, sexistas e econômicas de um ideal excludente de sociedade.

Analisar neste projeto as narrativas destes filmes refletindo sobre processos sociais e dramatúrgicos de interpretação e confrontação; sobre formas excludentes do pensamento humano e da sociedade, e sobre o olhar criativo multidimensional na busca por compreensões acerca da condição humana é contribuir para um diálogo propositivo de transformação de modelos pré-fabricados de visão, tanto nas ciências e na sociedade quanto no cinema e nas artes, de um modo geral. O jurista Alcides Pedro Sabbi diz que “descrever a realidade por fora, por cima, à distância, através de tipos abstratos, clichês, estereótipos, é próprio da pedagogia do conservador”[14]. Afirma ainda que “não transformadas por dentro, as formas tendem a esvaziar-se, resultando meros invólucros, preservados por si mesmos, e disfuncionais em relação à realidade.”[15]

É possível que os filmes Estamira e Moacir Arte Bruta estejam inseridos nessa pedagogia conservadora, tratando de tipos estereótipos em condições de exclusão social sem qualquer propósito junto à realidade? Ou que multidimensionam a visão do telespectador para além desses clichês, encontrando na dialética contemporânea da narrativa cinematográfica documentária novos tempos, espaços e corpos representificadores do real, novas maneiras de lidar com o mundo que existe além do visível, além da condição cristalizada do pensamento social? São respostas às quais este trabalho chega, não fazendo delas afirmações fechadas, finitas. Mas abrindo-as para possibilidades maiores de compreensão e de construção de uma dramaturgia do cinema documentário antropológico fiel à condição humana.


Esta pesquisa foi orientada por Gabriela Lirio Gurgel.
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[1] PRADO, Marcos. Histórias do Jardim Gramacho: além do fato/lixão. 31/07/2005, disponível em: http://jbonline.terra.com.br/jb/papel/cidade/2005/07/30/jorcid20050730004.html .
[2] Id., Ibid.
[3] É como Moacir se refere às figuras diabólicas que desenha.
[4] O termo transdisciplinaridade abrange um significado mais amplo acerca da apreensão múltipla, não-linear e integrada do real e do conhecimento, não sendo algo intrínseco às novas tendências do cinema documentário; apenas, aqui, utilizo o termo para integrar o cinema documentário neste contexto.
[5] PEIXOTO, Clarice in: MONTE-MÓR, Patrícia e PARENTE, José Inácio (org.). Cinema e Antropologia: Horizontes e Caminhos da Antropologia Visual. Rio de Janeiro, Interior Produções, 1993, p. 12.
[6] MENEZES, Paulo. Representificação: As relações (im)possíveis entre cinema documental e conhecimento. RBCS vol. 18, nº 51, fevereiro/ 2003.
[7] Id., Ibid., p. 94.
[8] O evento aconteceu no Centro Cultural Banco do Brasil, e os registros dos debates e seminários resultou no livro organizado por MONTE-MÓR e PARENTE (Id.,Ibid).
[9] PEIXOTO, Clarice in: MONTE-MÓR, Patrícia e PARENTE, José Inácio (org.). Cinema e Antropologia: Horizontes e Caminhos da Antropologia Visual. Rio de Janeiro, Interior Produções, 1993, p.12.
[10] TEIXEIRA, Francisco Elinaldo. Eu é outro: documentário e narrativa indireta livre in: Documentário no Brasil: tradição e transformação / Francisco Elinaldo Teixeira (org.). – São Paulo: Summus, 2004, p.47.
[11] Id.,Ibid.
[12] PARENTE, André in: MONTE-MÓR, Patrícia e PARENTE, José Inácio (org.). Cinema e Antropologia: Horizontes e Caminhos da Antropologia Visual. Rio de Janeiro, Interior Produções, 1993, p. 52-53.
[13] Id.,Ibid., p. 51.
[14] SABBI, Alcides Pedro. Agética da repressão reagética da liberdade. São Paulo: Ícone, 1986, p.28.
[15] Id.,Ibid.

domingo, 6 de abril de 2008

CAPÍTULO 1 - Sociedade sistemática, corpo disciplinado e a construção moderna do olhar

O paradigma moderno, cerne da formação e da crise atual da civilização global, é criador dos conceitos, dos métodos, das técnicas, das interpretações e das representações da apreensão do real e do conhecimento sob os quais vive a humanidade. Caracterizado pela centralização da racionalidade humana ao saber e controle das forças da natureza, este paradigma é herança do fenômeno sociológico de maior profundidade de atuação exercida sobre a atualidade: o Iluminismo, que consistiu num marcante esforço intelectual no campo das ciências objetivas, na Europa do século XVIII, para o conhecimento a fundo do cosmos universal.

A finalidade iluminista foi “o acúmulo de conhecimento gerado por muitas pessoas trabalhando livre e criativamente em busca da emancipação humana e do enriquecimento da vida diária”[1]. Assim, “o domínio científico da natureza prometia liberdade da escassez, da necessidade e da arbitrariedade das calamidades naturais”[2]. O triunfo da racionalidade, no entanto, marcou profundamente o destino da humanidade e do Planeta por um processo instrumental de separação do ser humano e da natureza que, paradoxalmente aos ideais ditos pelo Iluminismo, desencadeou, numa gradação até então irrefreada, os próprios males da escassez, da necessidade e das calamidades naturais a que se buscou controlar. Remetendo seu argumento à tese de Max Horkheimer e Theodor Adorno, o geógrafo inglês David Harvey diz haver “a suspeita de que o projeto do Iluminismo estava fadado a voltar-se contra si mesmo e transformar a busca da emancipação humana num sistema de opressão universal em nome da libertação humana.”[3]





A herança do Racionalismo e do Iluminismo inclui a crença na dominação da natureza pela humanidade através da indústria e da técnica. O ser humano é colocado arrogantemente não apenas no centro do universo e da natureza, mas é visto como um ser superior à natureza, todo-poderoso por virtude da sua razão e dos objetos que ela cria.[4]






A Criação de Adão, de Michelângelo (1511) . Obra renascentista - movimento ideológico precursor do Iluminismo.





À luz do Iluminismo, o eixo antropocêntrico da modernidade “desenvolveu sua concepção de um real racionalmente ordenado e do homem definido pela sua racionalidade”[5], resultando em uma construção histórica de organização da vida social e numa determinação da condição criativa do pensamento e ação humanas indissociáveis “das concepções ontológicas, epistemológicas e antropológicas que presidiram sua construção”[6]. Neste contexto reside não somente o paradigma moderno, mas a própria crise de seu “essencialismo racionalista e da teoria representacional do conhecimento”[7], que reduzem a capacidade criativa do ser humano e das organizações humanas.




... a ontologia racionalista e essencialista da modernidade é indissociável da perspectiva epistemológica que atribui à razão científica o monopólio nos processos de conhecimento. Esta perspectiva reducionista foi responsável pela produção de uma dupla e contraditória concepção sobre o homem e sua capacidade de conhecimento. De um lado, sustentou a afirmação de sua arrogância, afirmando sua capacidade de tornar-se dominador do real na sua totalidade. De outro lado, entretanto, mutilou a capacidade humana de conhecer, negando validade a múltiplas experiências de apreensão da complexidade do real.[8]




Este contraponto entre a capacidade humana de “dominar o real na sua totalidade” e a mutilação da “capacidade humana de conhecer” é um fenômeno energético possível num sistema social que canaliza a capacidade criativa do indivíduo e do coletivo em relações de causa e efeito, ou num “circuito reagético”, segundo a teoria elaborada pelo jurista Alcides Pedro Sabbi:




O circuito reagético tem como campo as estruturas da sociedade.
Tratando-se da ação e da reação, o circuito em vista é um processo energético. Os momentos e os resultados intermediários e finais terão necessariamente uma repercussão energética sobre todo o universo humano, tomado individual ou socialmente. Tudo, neste, se reflete sobre o todo, afetando a sua saúde. Desse modo, o homem será tratado como conteúdo energético; a estrutura, como instrumento de canalização energética na auto-realização do indivíduo e da sociedade.
[9]



Em Horkheimer e Adorno, este “circuito reagético” como processo energético de sobrevivência dentro da estrutura social pode ser compreendido noutras palavras que classificam a sociedade moderna como:





... uma espécie de contextura formada entre todos os homens e na qual uns dependem dos outros, sem exceção; na qual o todo apenas pode subsistir em virtude da unidade das funções assumidas pelos co-participantes, a cada um dos quais se atribui, em princípio, uma tarefa funcional; e onde todos os indivíduos, por seu turno, estão condicionados, em grande parte, pela sua participação no contexto geral.[10]


Assim, a sociedade sistemática que caracteriza a modernidade condiciona os seus dispositivos disciplinares aos corpos sociais, individuais e coletivos, como indispensáveis à vida em si. O circuito reagético, ou seja, a relação ação-reação, causa-efeito, é funcional na sociedade através de dispositivos disciplinares de participação e controle das potencialidades do indivíduo, contendo em si a opressão e a repressão como forma de mutilação dessas potencialidades.

Os dispositivos disciplinares, resultados estratégicos do conhecimento ontológico, epistemológico e antropológico a que a sociedade moderna está arraigada, utilizam-se de conceitos e técnicas de observação e ordenação humana com fins fechados em si mesmos. Considero aqui a teoria do poder disciplinar da vigilância e da punição, elaborada por Michel Foucault, como modelo. Segundo a teoria atribuída à milícia, “o sucesso do poder disciplinar se deve sem dúvida ao uso de instrumentos simples: o olhar hierárquico, a sanção normalizadora e sua combinação num procedimento que lhe é específico, o exame”[11].




O exercício da disciplina supõe um dispositivo que obrigue pelo jogo do olhar; um aparelho onde as técnicas que permitem ver induzam a efeitos de poder, e onde, em troca, os meios de coerção tornem claramente visíveis aqueles sobre quem se aplicam. Lentamente, no decorrer da época clássica, são construídos esses "observatórios" da multiplicidade humana para os quais a história das ciências guardou tão poucos elogios. Ao lado da grande tecnologia dos óculos, das lentes, dos feixes luminosos, unida à fundação da física e da cosmologia novas, houve as pequenas técnicas das vigilâncias múltiplas e entrecruzadas, dos olhares que devem ver sem ser vistos; uma arte obscura da luz e do visível preparou em surdina um saber novo sobre o homem, através de técnicas para sujeitá-lo e processos para utilizá-lo.[12]


Pelo poder disciplinar nas milícias, ajudado por técnicas de vigilância, por este “jogo do olhar”, é possível entender que a ciência da observação traz em si, desde os tempos mais anteriores, uma intenção de poder sobre o observado, seja este poder o de apreender o conhecimento do real na natureza, seja o de apreender o conhecimento racional da condição humana. E é possível afirmar ainda que o cinema nasce de tais princípios científicos de observação.

O fenômeno das imagens em movimento é uma técnica que surge “na imbricação de uma série de pesquisas científicas que se bifurcaram. O cinema, evidentemente, foi se transformando num espetáculo, mas os seus primeiros anos foram marcados por pesquisas científicas e os primeiros teóricos do cinema foram de fato cientistas.”[13] É nesta imbricação de pesquisas científicas e nos objetivos porque partiam estes cientistas que a história das ciências humanas e do cinema se confundem, como melhor explica Clarice Peixoto:





Os laços que unem a antropologia e o cinema, desde suas origens, nos incitam à reflexão sobre o desenvolvimento simultâneo destas duas disciplinas numa época em que a Europa e a América buscavam assegurar os mercados necessários à sua industrialização e às exigências de seu expansionismo econômico, manifesto, principalmente, pelas diversas invasões coloniais. É evidente que a antropologia é precursora do cinema enquanto reflexão teórica, mas é somente no final do século XIX que ela desenvolve uma metodologia voltada para o trabalho de campo, e isso se dá no mesmo momento em que missionários e aventureiros percorrem o mundo em busca de outras sociedades.[14]




O fato é que a antropologia visual é tida como a primeira experiência de um filme documentário, ou seja, um documento antropológico baseado na pesquisa e na coleta de dados audiovisuais captados pelas lentes de uma câmera cinematográfica, operada pelo pesquisador-observador, num processo de troca de olhares que vai “da observação à descrição, da inventividade à intuição, da distância à participação, do realismo sensível à reconstituição minuciosa”[15]. Este processo que constrói a narrativa sociológica no filme etnográfico é o método do olhar científico sobre o outro, desenvolvido numa época em que as ambições expansionistas da América e da Europa investiam e aprimoravam suas técnicas de exploração do mundo.




O cinema vem completar essa parafernália instrumental de coleta de informações criando, de certa maneira, um olhar mais objetivado. A imagem em movimento, aliada à capacidade de registro do som simultâneo, objetivava os relatos dos viajantes, suprimindo seu conteúdo emotivo, da mesma forma que ajudava a rememorar as situações vividas. Desse modo, as singularidades e as diferenças do outro eram registradas e transportadas no seu tempo e espaço. [16]



Faço aqui ainda uma reflexão dialética a respeito do olhar sistemático e disciplinar, para o mundo e para o outro, com que foi originalmente objetivada a parafernália instrumental do cinema em seu início de vida, relacionando-o ao procedimento técnico e objetivo da observação panóptica do modelo disciplinar analisado por Foucault:




Este espaço fechado, recortado, vigiado em todos os seus pontos, onde os indivíduos estão inseridos num lugar fixo, onde os menores movimentos são controlados, onde todos os acontecimentos são registrados, onde um trabalho ininterrupto de escrita liga o centro e a periferia, onde o poder é exercido sem divisão, segundo uma figura hierárquica contínua, onde cada indivíduo é constantemente localizado, examinado e distribuído entre os vivos, os doentes e os mortos – isso tudo constitui um modelo compacto do dispositivo disciplinar. A ordem responde à peste; ela tem como função desfazer todas as confusões: a da doença que se transmite quando os corpos se misturam; a do mal que se multiplica quando o medo e a morte desfazem proibições. Ela prescreve a cada um seu lugar, a cada um seu corpo, a cada um sua doença e sua morte, a cada um seu bem, por meio de um poder onipresente e onisciente que se subdivide ele mesmo de maneira regular e ininterrupta até a determinação final do indivíduo, do que o caracteriza, do que lhe pertence, do que lhe acontece.[17]















Ora, o princípio da captação objetiva das imagens pelas lentes de uma câmera cinematográfica pressupõe que estas imagens se desloquem para um “espaço fechado, recortado e vigiado em todos os seus pontos” por observadores que são desde o cineasta e sua equipe ao público das telas; as lentes da câmera operam como uma extensão técnica do olhar; e a intenção panóptica que há naturalmente no olhar cinematográfico concede ao cineasta “um poder onipresente e onisciente” para “a determinação final do indivíduo, do que o caracteriza, do que lhe pertence, do que lhe acontece” em seu material cinematográfico, através de uma ordenação dramatúrgica, de uma narrativa.


Esta proposição entre a observação no cinema e num campo disciplinar como o militar não é determinante, nem tão pouco deve ser levado ao pé da letra. Mesmo porque, nos termos da análise dramatúrgica, a visão panóptica, por “levar em consideração todas as partes ou elementos”[18], constrói uma visão multidimensional, complexa, criativamente aberta e subjetiva do cineasta, que marca a característica pós-estrutural e pós-moderna da narrativa no cinema, seja ficcional ou não ficcional. Este diálogo procura somente visualizar parentescos intencionais nas origens técnicas e objetivas do cinema e da observação do corpo social, por serem ambos os modelos construídos com base naquela mesma “ontologia racionalista e essencialista da modernidade”[19], nos caminhos ladrilhados pelo pensamento antropocêntrico racionalista e iluminista.



Não há como negar que a construção moderna do olhar como método de apreensão do real e da condição humana teve o advento da cinematografia como grande aliado. O cinema é nascido na sociedade sistemática, é um dispositivo técnico surgido através da lógica do paradigma moderno. O cinema contém em sua neutralidade de ação os princípios naturais da luminosidade, da visibilidade e da captação sonora, e acima disto o olhar ciente, dinâmico e objetivado do cineasta para o outro – aquele ou aquilo que se observa. Desta maneira, o cineasta já se coloca, e coloca também este outro, sob parâmetros de espelhamento de identificação, e havendo qualquer rachadura, qualquer ponto trincado neste espelho de identidades, é provável elevar-se para o cineasta a condição de normalizar, de excluir ou de multidimensionar os reflexos do outro encontrados; é este grau de poder que aprofunda a visão, percebe o outro, coleta dele o que viu e intui sua percepção a uma ordenação própria; esta ordenação – uma narrativa construída – nasce do processo criativo do cineasta em relação direta e indireta com o seu observado, e da intenção desejada pelo cineasta na relação deste observado com aquele que o assistirá.


Foto de Marcos Prado - Jardim Gramacho, Duque de Caxias-RJ

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[1] HARVEY, David. Condição Pós-Moderna. São Paulo: Edições Loyola, 6ª ed., 1996, p.23.
[2] Id,.Ibid.
[3] Id,.Ibid.
[4]ARRUDA, Marcos e BOFF, Leonardo. Globalização: desafios socioeconômicos, éticos e educativos: uma visão a partir do Sul. Petrópolis, Rj, Vozes, 2000, p. 11.
[5]PLASTINO, Carlos Alberto. Complexidade e Transdisciplinaridade in: ROTANIA, Alejandra e WERNECK, Jurema (org.). Sob o Signo das Bios: Vozes Críticas da Sociedade Civil. Nova Friburgo, Marca Gráfica e Editora, 2005, p. 26.
[6] Id., Ibid., p. 24.
[7] PLASTINO, Carlos Alberto, op. cit., p 26.
[8] Id., Ibid., p. 26-27.
[9]SABBI, Alcides Pedro. Agética da repressão reagética da liberdade. São Paulo: Ícone, 1986, p. 13.
[10]HORKHEIMER, Max e ADORNO, Theodor apud FIGUEIREDO, Eduardo Henrique Lopes. Crítica à teoria sistêmica da sociedade, PPGD-UFPR, Paraná, 2003, p. 139.
[11] FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: nascimento da prisão; tradução de Raquel Ramalhete. Petrópolis, Vozes, 32ª ed., 1987, p. 143.
[12] Id., Ibid., p. 143-144.
[13] DA-RIN, Sílvio. In: MONTE-MÓR, Patrícia e PARENTE, José Inácio (org.). Cinema e Antropologia: Horizontes e Caminhos da Antropologia Visual. Rio de Janeiro, Interior Produções, 1993, p. 19.
[14]Id., Ibid.
[15]PEIXOTO, Clarice in: MONTE-MÓR, Patrícia e PARENTE, José Inácio (org.). Cinema e Antropologia: Horizontes e Caminhos da Antropologia Visual. Rio de Janeiro, Interior Produções, 1993, p.10.
[16] Id., Ibid, p. 12.
[17] FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: nascimento da prisão; tradução de Raquel Ramalhete. Petrópolis, Vozes, 32ª ed., 1987, p.163-164.
[18] Dicionário Eletrônico Houaiss.
[19] PLASTINO, Carlos Alberto, op. cit., p. 26.


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1.1. A NARRATIVA CINEMATOGRÁFICA COMO MÉTODO CRIATIVO DO OLHAR

A idéia de narrativa contemplada neste trabalho parte do princípio de que “qualquer objeto já é um discurso em si. É uma amostra social que, por sua condição, torna-se um iniciador de discurso, de ficção, pois tende a recriar em torno dele (mais exatamente, aquele que o vê tende a recriar) o universo social ao qual pertence.”[1] Portanto, as reflexões que aqui seguem são alicerçadas por argumentos, proposições, indagações e consensos originados de estudos tanto da antropologia visual e do cinema documentário quanto do cinema de ficção, e também da própria dramaturgia clássica, que dialogam com esta condição.

Por definição, o narrativo é extra-cinematográfico, pois se refere tanto ao teatro, ao romance quanto simplesmente à conversa cotidiana: os sistemas de narração foram elaborados fora do cinema e bem antes de seu surgimento.[2]


A construção aristotélica dos gêneros literários é o preciso discurso narrativo na condição de representação do pensamento e da ação humana na sociedade. O épico, o lírico e o drama são como “arquiformas literárias”[3] da vida em sociedade, que é caracterizada, assim como na mimese[4], por ações e situações sucessivas, por conflitos internos e externos provocadores e/ou conseqüentes dessas ações, e pelos seres sociais que têm suas vidas construídas a partir da sucessão das ações e dos conflitos, sempre em busca de uma finalidade, de um ponto de equilíbrio.

Neste seguinte raciocínio, é possível entender como uma clássica narrativa ficcional se molda aos processos sistemáticos da vida em sociedade:


A análise estrutural literária evidenciou que qualquer história, qualquer ficção, pode reduzir-se ao encaminhamento de um estado inicial a um estado terminal e pode ser esquematizada por uma série de transformações que se encadeiam através de sucessões do tipo: erro a cometer – erro cometido – fato a punir – processo punitivo – fato punido – benefício realizado.[5]


Este esquema narrativo clássico do erro, da punição e do benefício aproxima-se do diálogo, no início do capítulo, acerca da construção do olhar antropocêntrico, tanto para o universo quanto para o ser humano, como formador das construções científicas e artísticas da era moderna, incluindo aí o próprio surgimento do olhar cinematográfico. Nos remete também à teoria do circuito reagético, de Alcides Pedro Sabbi, como processo energético de ação e reação, de causa e efeito na sociedade, e ainda à teoria da vigilância e da punição, de Foucault, sobre os corpos sociais presos a espaços controlados pela observação. A narrativa clássica, no sentido deste esquema, reconstrói a sociedade em sua seqüência lógica e limitadora; é uma estrutura reducionista, que diminui o poder transformador e reflexivo da arte dramatúrgica ao mero caráter de imitação, de conformação relatada; uma simples metanarrativa.

O caráter de relato da narrativa, porém, é inevitável a qualquer modelo de narração, como nos mostra esta definição:



Narrar consiste em relatar um evento, real ou imaginário. Isso implica, pelo menos, duas coisas: em primeiro lugar, que o desenvolvimento da história esteja à disposição daquele que a conta e que, assim, possa usar um certo número de recursos para organizar seus efeitos; em segundo lugar, que a história siga um desenvolvimento organizado, ao mesmo tempo, pelo narrador e pelos modelos aos quais se adapta.[6]


Com isto, conclui-se que qualquer ordenação específica no cinema, seja de um filme ficcional ou não ficcional, relacionada a um determinado objeto ou objetivo que se quer representificar corresponde ao contexto de uma linguagem, de uma narratividade. Para que um filme, por exemplo, seja “plenamente não-narrativo”, é preciso que nele “não se possa reconhecer nada na imagem e que tampouco se possa perceber relações de tempo, de sucessão, de causa ou de conseqüência entre os planos ou os elementos”[7].

Mesmo em se tratando dos modos pós-estruturalistas de construção da imagem cinematográfica documental, os processos criativos que o fazem terminam por constituir formas e meios que configuram um relato do relacionamento do cineasta com o seu objeto observado.


Permanecendo o modo de ser essencial de um fenômeno e, conseqüentemente, com isso delineando o campo de ação humana, para o homem as materialidades se colocam num plano simbólico visto que nas ordenações possíveis se inserem modos de comunicação. Por meio dessas ordenações o homem se comunica com os outros.[8]



Pelas novas configurações no modo de se comunicar, o gênero documentário segue caminhos cada vez mais abertos em seus processos criativos de construção do olhar. É um olhar mais subjetivado e transdisciplinar, que valoriza a complexidade daquilo que vê e relaciona a visão a diversas interpretações do conhecimento sem reduzir o objeto, o outro, a formas preservadas por si mesmas, narradas por pedagogias conservadoras[9] de visão, como aquelas enraizadas na sociedade sistemática e disciplinar, as quais já foram discorridas neste capítulo.

Paulo Menezes[10], a respeito do olhar do cinema documentário, discorre sobre “narrativas ‘inventadas’, encenadas, construídas para o processo de constituição de conhecimento, sobre si e sobre os outros”[11], afirmando que “pensar-se um filme antropológico ou etnográfico implica pensar-se a pesquisa e a ética da verdade como critério básico de legitimação da fidelidade da informação ali contida”[12].

Fayga Ostrower, raciocinando sobre a criatividade e os processos criativos do ser humano, aponta a apreensão deste “modo de ser essencial de um fenômeno” e o conseqüente delineamento do “campo de ação humana” como um processo energético imprescindível a uma ordenação criativa mais experimental, mais livre das instituições e, principalmente, fiel ao conteúdo desse fenômeno.


Cada materialidade abrange, de início, certas possibilidades de ação e outras tantas impossibilidades. Se as vemos como limitadoras para o curso criador, devem ser reconhecidas também como orientadoras, pois dentro das delimitações, através delas, é que surgem sugestões para se prosseguir um trabalho e mesmo para se ampliá-lo em direções novas. De fato, só na medida em que o homem admita e respeite os determinantes da matéria com que lida como essência de um ser, poderá o seu espírito criar asas e levantar vôo, indagar o desconhecido.[13]


Esses “determinantes da matéria”, suas “possibilidades e impossibilidades”, ou seja, o modo essencial do outro como legitimidade da informação cinematográfica compartilham com a premissa colocada por Paulo Menezes da pesquisa e da ética da verdade na composição narrativa do cinema documentário antropológico. Quando estes fatores determinantes são compreendidos e admitidos, a inventividade, as confrontações, as interferências ficcionais do documentarista, ao contrário de deturparem a essência do outro que se observa, libertam a verdade do observado dos raciocínios fechados, hierárquicos e punitivos do pensamento.

Por todas essas questões discutidas, o propósito aqui não é analisar as narrativas de Estamira e Moacir Arte Bruta enquadrando-as forçadamente em modalidades cinematográficas porque isto seria limitar os diálogos sobre as estruturas e os objetivos narrativos destes filmes. Suas composições dramatúrgicas são observadas aqui como proposições criativas do olhar de seus respectivos diretores, em reciprocidade com o outro visto, por meios criativos e intersubjetivos de confrontação e interpretação, e representificando os aspectos deste processo por meio de ordenações estéticas, estruturais e objetivas construídas durante o processo.

O pesquisador de cinema Fernão Pessoa Ramos oferece um raciocínio de importante contribuição à linha de desenvolvimento desta análise:


No Brasil, reina de um modo difuso, mas uniforme, o discurso que reivindica a não especificidade do campo não ficcional. Nele podemos encontrar embutidos alguns pilares do pensamento contemporâneo de origem pós-estruturalista. A linha mais corriqueira deste raciocínio desenvolve-se dentro de uma postura que valoriza o desafio a normas estabelecidas. Negar o campo documentário equivale aqui a estabelecer uma ruptura. O documentário é visto como um campo tradicional, com regras a serem seguidas. Extrapolar estas fronteiras é um atestado de inventividade e criatividade. O logro que uma narrativa ambígua, eventualmente, pode pregar no espectador, serve como modelo. É interessante notar como este tipo de narrativa encontra-se no âmago da sensibilidade estética de nossa época, provocando uma espécie de atração irrefreável sobre o movimento de análise. Uma narrativa aparentemente documentária, que termina como ficção, seria a prova da impossibilidade de uma distinção analítica clara. Discutir fronteiras e definições surge como algo ultrapassado, pois reafirma a possibilidade de um saber que desloca, do centro da arena, o recorte analítico que gira em torno de variações sobre a fragmentação subjetiva (seja na análise, seja no discurso fílmico propriamente).[14]



A narrativa cinematográfica, com seus dispositivos de apropriação e desapropriação sobre a imagem tangível transposta a uma realidade intangível; com suas habilidades técnicas de inversão, fragmentação, extensão e tantas outras possibilidades de reincorporar, recriar e multiplicar tempos, espaços e corpos, reconstrói muito peculiarmente a realidade visível. A evolução da ciência ótica, a progenitora do cinema, se deu na história da humanidade em função das buscas por um conhecimento totalitário da natureza universal – do macrocosmo – e por um conhecimento totalitário da condição humana – do microcosmo. As ciências humanas originaram a narrativa cinematográfica documentária dentro de uma perspectiva totalitária do conhecimento humano, criando aí processos excludentes de relação nas sociedades dominantes com o outro observado. Em contrapartida, este mesmo olhar totalitário, sistemático e disciplinar das sociedades dominantes sobre o outro diferente fez nascer também – do próprio resultado da opressão e da repressão que delineiam outros corpos sociais como diferentes dos padrões sociais – um olhar mais livre e multidimensional na narrativa cinematográfica contemporânea, fiel à complexidade da condição humana, que é, ao mesmo tempo, única e comum ao eu e ao outro.

Que diferenças entre o eu objetivo e o outro objetivado são essas? Qual é a anatomia social do corpo excluído? Por que e para que a dramaturgia contemporânea da forma-documentário está sendo hoje atraída pela representificação do outro diferente? O próximo capítulo se dedica a estudar a anatomia social do corpo excluído nestas perspectivas dentro das narrativas criadas para contar as histórias de Estamira e Moacir: representificações de situações de exclusão características de sociedades como a do Brasil, historicamente desgastada pelo “olhar hierárquico”, e que tiveram suas vidas transportadas para dentro do campo de ação do cinema, sob olhares múltiplos de confrontação e interpretação.



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[1] AUMONT, Jacques et alii. A Estética do Filme. Trad. Marina Appenzeller. São Paulo, Papirus, 1995, p.90.
[2] Id., Ibid., p. 96.
[3] ROSENFELD, Anatol. O teatro épico. São Paulo: Perspectiva, 1985, p.16.
[4] BRANDÃO, Junito de Souza. Teatro grego: tragédia e comédia. Petrópolis, Vozes, 1984, p.13.[5] AUMONT, Jacques et alii. A Estética do Filme. Trad. Marina Appenzeller. São Paulo, Papirus, 1995. p.91.
[6] Id., Ibid., p. 92.
[7] Id., Ibid., p. 93.
[8]OSTROWER, Fayga, Criatividade e processos de criação. Petrópolis: Vozes, 1978, p. 33.
[9] SABBI, Alcides Pedro. Agética da repressão reagética da liberdade. São Paulo: Ícone, 1986, p.28.
[10] MENEZES, Paulo. Representificação: As relações (im)possíveis entre cinema documental e conhecimento. RBCS vol. 18, nº 51, fevereiro/ 2003.
[11] Id.,Ibid., p. 89.
[12] Id.,Ibid.
[13] OSTROWER, Fayga, Criatividade e processos de criação. Petrópolis: Vozes, 1978, p. 32.
[14] In Ramos, Fernão Pessoa e Catani, Afrânio (orgs.), Estudos de Cinema SOCINE 2000, Porto Alegre, Editora Sulina, 2001, pp.192/207.

sábado, 5 de abril de 2008

CAPÍTULO 2 - A anatomia do corpo social excluído na oralidade e na imagem das narrativas de Estamira e Moacir Arte Bruta.

As condições
cognitivas apresentadas nos filmes Estamira e Moacir Arte Bruta que estimularam o ponto de vista desta análise são formadas por uma relação mútua e transversal entre a imagem e a oralidade presentes nas produções. Os discursos daquilo que se vê e do que se ouve nos filmes, além de transparecerem-se como muito próprios das relações peculiares de vida de suas personagens reais, mesmo quando estimulados pelas interferências dos cineastas, seguem cursos imbricados e bastante funcionais como construções da realidade.

A fusão destes dois dispositivos de sensibilização (imagem e oralidade), possível pelo aparato técnico da montagem cinematográfica, pelas interpretações e confrontações dos cineastas e principalmente pela disposição espontânea dos corpos representificados nos filmes diante das câmeras possibilitou a existência de raciocínios transnarrativos, no sentido de insistir a percepção multidimensional sobre determinadas informações, à primeira vista, de caráter metanarrativo.

A prática da metanarrativa como é compreendida neste trabalho refere-se à construção clássica dos relatos da vida, como foi avaliada na última parte do capítulo anterior, visto que, tanto na sistematização da vida em sociedade quanto numa criação dramatúrgica – seja esta ficcional ou não ficcional – exista, de um lado, a inocência habituada da visão, ou de outro lado a sua “esperteza ao contrário”[1], ordenando ações, imagens e discursos referenciais a raciocínios convencionais. Por isto, ao invés de dizer aqui que as dramaturgias dos filmes em análise são invariavelmente metanarrativas da vida real, ou seja, simples construções dramatúrgicas que nada acrescentam e somente copiam passivamente o quê ou aquele que está diante das câmeras, é justo trabalhar a idéia da transnarratividade[2] nestes filmes por transportarem as possibilidades da condição humana de suas personas sociais representificadas a uma narrativa para além do raciocínio previsível, não necessariamente seguindo os moldes e as intenções convencionais, mas reconstruindo novas visões a partir de signos estabelecidos.

O caráter transnarrativo dos filmes em questão foi estudado e analisado a partir da seleção de alguns aspectos que aparecem neles com grande representatividade, direta ou indiretamente, construídas pela imagem e pela oralidade com peculiaridades que expressam diálogos sociais significantes sobre a anatomia do corpo excluído, ora delineando este corpo como monstro da exclusão ora como herói de um certo sentido de inclusão. Estes diálogos, como veremos a seguir, discorrem sobre as interpretações referentes à ancestralidade cultural afro-brasileira, às carências e às repressões sociais nas relações psicofísicas de exclusão das personagens.



O olhar

transnarrativo


é mútuo e transversal.


Foto de um fotograma da face de um pequeno indío, ou de uma pequena índia. (tirada por Márcia Shoo.)



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[1] Faço nestes termos uma alusão ao ponto de vista de Estamira sobre aqueles que detêm o controle do poder dominante na sociedade, ou que compactuam com esta forma de poder. No filme, Estamira diz: “Não tem mais inocente, tem esperto ao contrário.” Quando atribuo aqui a um cineasta o caráter de “esperteza ao contrário”, diferente de uma inocência habituada ao modo de vida dominante, quero dizer que este entende e concorda com um modo conformado de fazer cinema, contribuindo para a cristalização de raciocínios fechados, unilaterais. Este não parece ser o caso dos diretores em questão.
[2] O termo transnarratividade não foi encontrado em nenhuma das bibliografias estudadas. Ela formula-se aqui como um conceito nascido desta pesquisa, absorvendo para os termos da dramaturgia as características inerentes ao conceito da transdisciplinaridade como forma de busca do conhecimento plural.

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2.1. NARRATIVA PSICOFÍSICA DA EXCLUSÃO



Estamira e Moacir, mulher e homem negros de vidas distantes e distintas dentro de uma mesma nação, porém traçadas por aspectos psicofísicos que os aproximam de pontos de vista sobre a exclusão, guardam forças ancestrais em seus corpos, mediadas entre a cultura e a natureza, que justificam a presença mútua e transversal da oralidade e da imagem em seus modos de sobreviver e de se comunicar. Essas forças, porém, quando externadas, provocam julgamentos marginalizados a seus respeitos.


No estudo de Maria Antonieta Antonacci sobre o desafio a verdades inscritas sobre os corpos negros de tradições africanas no Brasil, fala-se sobre a herança de “matrizes orais” e memórias “constituídas com ou sobre a natureza” que compuseram socialmente o corpo negro no Brasil como “arquivo vivo” de sua história.


Por diferentes caminhos, narrativas orais e visuais trazem lutas sem fronteiras em torno da liberdade, evidenciando que memória e corpo constituem-se, indissociavelmente, entre povos tributários de matrizes orais. Suas tradições, memorizadas em presença de corpos, materializam-se em diferentes gêneros não-verbais de narratividade inerentes à constituição dos corpos em arquivos históricos capazes de emitir ‘vozes do corpo’, prolongadas em artefatos de suas culturas.[1]





O que a dominância ocidental legou aos corpos negros na história os excluiu das aprendizagens e práticas do Ocidente como a escrita alfabetizada, por exemplo, além de ter criado intolerâncias cristalizadas direcionadas a estes povos, no que diz respeito à relação que têm com e sobre a natureza em seus rituais, seus costumes, suas manifestações, suas divindades.




Se a liberdade era representada por tempos de fala, fugas e silêncio evocam tempos de corpos paralisados. Intolerâncias culturais atravessaram o Atlântico encobrindo vozes no câmbio de corpos negros comercializados como despojos de guerra. Memórias, crenças, costumes navegaram em seus corpos e, estimulados em exílio, reinventaram modos de ser e de lutar em terras estranhas onde ‘a língua cresceu novamente mas a macacaria continuou silenciosa’, para ouvidos culturalmente desafinados.[2]


A presença das divindades como força sobrenatural, e da natureza animal e vegetal confluindo na cultura dos corpos negros foi incorporada à cultura dominante ocidental por malhas pré-conceituosas, folclóricas e estereotipadas, atribuindo a estes povos enfermidades psíquicas e corporais em detrimento de sua alteridade.


Para além da fúria sobre corpos rebelados a imposições escravistas por homens e mulheres dominados por avidez material e moral de práticas mercantis, deixou sentir flagelações corporais, martírios psíquicos, enfermidades culturais que impuseram profundas cicatrizes ao corpo nação Brasil. Castigos e perversidades advindos de guerras culturais trazem problemáticas de estudo sobre formas e significações históricas deste confronto sem fronteiras entre corpos e mentes de distintas e radicalmente opostas culturas e civilizações. Questões prementes para nossas sociedades nascidas do pecado original de processos colonizadores de potências européias.[3]


Passando agora a relacionar estes estudos com a “arte bruta” representativa das visões sobrenaturais e animalizadas de Moacir, e com os discursos que residem tanto nas interpretações orais da família e da comunidade com as quais ele convive, como também na narrativa desabafada, de invocações sobrenaturais e expressões corporais animalizadas em Estamira, é possível perceber nos filmes canais transnarrativos que situam a força ancestral da história e da cultura dos corpos negros brasileiros nas expressividades audiovisuais selecionadas. Existem aspectos sofridos, devido ao inevitável nascedouro escravista de suas condições econômicas e sociais, mas há também um discurso maduro e de aprendizado na maioria deles. Veja-se nesta interpretação do pai de Moacir sobre os desenhos e as visões “estranhas” do filho:








A compreensão dele eu não tenho e a minha ele não tem. A minha compreensão é de outro tipo, a dele é outra. O que eu faço ele não faz, o que ele faz eu não faço.



Ou nas seguintes falas de Estamira, ditas no espaço degradante da descartabilidade urbana, de onde dá rumos suburbanos à sua vida:







As doutrina errada, trocada, ridicularizou os homens.

A Isabel soltou eles e não deu emprego aos escravos, passam fome, comem qualquer coisa igual aos animal, não têm educação, é muito triste.

Isso aqui são escravos disfarçados de libertados.






Nota-se por estes discursos do pai de Moacir e de Estamira duas distintas percepções sobre a exclusão, lembrando nestas os aspectos históricos, culturais, econômicos e sociais da corporeidade afro-brasileira. Na primeira percepção, visível na oralidade do pai de Moacir, há um respeito natural e inquestionável sobre a alteridade do filho; existe uma visão valorosa da subjetividade da condição humana, desprovida das malhas que apontam o rótulo da exclusão. Durante todo o filme, o pai de Moacir interpreta o caráter “sobrenatural" e "animalesco” da psique de Moacir como possibilidade inquestionável da individualidade humana, mesmo dizendo isto de outra maneira, inocentemente. Na segunda percepção, a partir da oralidade de Estamira, a inocência é indubitavelmente substituída pela experiência própria da exclusão, de quem vive o legado de uma sociedade fabricante da exclusão. A ancestralidade corpórea que invoca o poder “sobrenatural” da psique e também a presença da natureza animal culturalizada nas partituras físicas de Estamira manifestam-se traumaticamente; o teor “assombroso” com que Estamira se expressa, reforçado pelas imagens selecionadas por Marcos Prado – os fenômenos meteorológicos do relâmpago, da chuva torrente, os cadáveres despejados como lixo, o acinzamento do céu cortado pelo sobrevôo dos urubus – constroem a anatomia social da exclusão de Estamira.

Em Moacir, a convivência com sua corporeidade física e psíquica não demonstra ser sofrida, traumática. Ao contrário, a condição de sua corporeidade é o objeto próprio de seu sentido de inclusão, de sua construção de vida como sujeito de si mesmo, e não como objeto de visões deturpadas a seu respeito. Walter Carvalho parece entender isto, e constrói esta transnarratividade pelos elementos naturais (animal e vegetal) que compõem os arredores de sua personagem real: a presença do gato e do cachorro, a todo momento, acompanhando fielmente o companheiro Moacir; a sonoridade ambientada unicamente por cantos de pássaros na cena em que ele pinta a face do diabo numa placa de ferro; a fotografia de cenas que ressaltam a beleza mística do município de Alto Paraíso, ao mesmo tempo, fazendo disto uma alusão à mística da condição humana e da arte bruta de Moacir, como nas imagens iniciais do filme, por exemplo, onde uma flor solitária e exótica é iluminada pelo cineasta, havendo por trás um céu de escuridão pura, não contaminado pela luminosidade urbana, apenas pela presença da lua.




Observa-se em Moacir Arte Bruta o simbolismo ancestral na construção da oralidade em depoimentos carregados de familiaridade com a cultura própria – uma cultura rural – como os do pai de Moacir, também nesta seqüência que ele conta ao cineasta Walter Carvalho e diante da câmera:







Quero muito que o senhor me explica um sonho que eu tive... esse guia sempre me acompanha toda a vida. Nós morava ali embaixo onde era a casa da Flor. Então... esse menino [Moacir] era pequeno. Aí um velho,
eu sentado numa cama alta... de frente virado prum velho lá, encostado na parede e o velho falou pra mim: ‘olha, você vive com o suor do seu rosto. Mais tarde não vai poder conviver com essa mulher’, que é a Maria [sua esposa, mãe de Moacir]. ‘No fim da sua vida você vai adquirir uma fortuna.’ Já não vi o velho mais naquela posição. Já via ele lá, acolá pra lá da rodagem. Montado a cavalo com chapéu de massa, acabanado no trote do cavalo e eu atrás, na carreira a pé, correndo atrás dele. Não virou mais pra mim pra falar nada. Falou: ‘me acompanha filho, quanto mais eu dou, mais eu tenho pra dar.’ Quem pode falar?







Ou mesmo nesta rima que criou ofertando para o filho Moacir, e que reproduz diante da câmera:




Bom dia Nonô, como é que você está? Se não tiver uma morena, vou caçar uma pra te dar. Eu quero um cômodo da sua casa pra mim alugar, pra mim encher de mulher pra mim namorar. Essa fita gravada é um presente que te dou. Eu já fui muito rapaz, agora tenho neto e sou avô. Morena bonita agora perto de nós chegou. Se você não tiver outra morena eu peço e te dou.












Os entrevistados em Moacir Arte Bruta apresentam interpretações variadas sobre os assuntos questionados por Walter a respeito de Moacir. Estas interpretações vão de acordo com o modo de convivência com o artista e com a compreensão de cada um sobre o que as figuras que ele vê e desenha representam. É interessante notar no filme a construção da “personagem Moacir” pelas experiências vividas por este na fala das pessoas: o senhor que, ao ser perguntado sobre como era Moacir quando garotinho, responde sem qualquer pré-conceito que ele era “do jeito que ele é: moreno”; ou o açougueiro que, buscando uma maneira de entender como Moacir é capaz de fazer o que faz, diz que o artista “vê a gente por debaixo da roupa”; as irmãs que dizem que os “capetins” e as genitálias desenhadas por Moacir passam uma "energia boa, positiva"; e o representante da casa cultural da comunidade, adornando com tendência filosófica e normalizadora o corpo social e a arte bruta de Moacir. O que eles contam está ordenado na narrativa do filme por assunto, e em raciocínios fragmentados, que vão se completando na seqüência das falas de cada um. Nesta sistemática, porém, ao invés de se formar um único e extenso raciocínio sobre cada assunto, a montagem faz com que o raciocínio se ramifique a vários, de acordo não somente com o ponto de vista dos entrevistados, mas do próprio olhar interpretador e confrontador de Walter, e da conseqüente janela que este olhar abre à visão do telespectador.

Em Estamira, a oralidade transnarrativa do filme é toda construída por ela. Tanto que os depoimentos dos outros entrevistados, seus filhos, parecem não ter força de confrontação sobre a verdade de Estamira. São depoimentos carregados de malhas religiosas, pré-conceituosas, julgadoras de sua “loucura”; o olhar dos filhos para Estamira é um olhar disciplinar, vigilante e punitivo. Vê-se por esta fala de sua filha mais velha, criticando o desejo de liberdade de Estamira em oposição a uma vida terminada num manicômio, à base de drogas dopantes:








Ela prefere viver 2 anos livre do que cinco bem,
trancada num local.





Marcos Prado entrega (simbolicamente) a câmera nas mãos de sua personagem real. O próprio chamado ao filme foi feito por Estamira, dizendo anteriormente à produção do documentário que a missão do cineasta é revelar a missão dela. A narrativa do filme é transcorrida por ela; com isto, Marcos Prado liberta-se e, ao mesmo tempo, liberta a pré-visão do telespectador para construir um filme “menos seu” e mais de Estamira. É um discurso onde o sujeito é o próprio objeto. Estamira reconhece-se enquanto objeto de um olhar cinematográfico, e constrói-se a partir daí como sujeito deste olhar. Enxerga-se como símbolo da exclusão e da descartabilidade humana; um ser regido pelo “controle remoto natural” do universo – como ela própria diz – sobrevivendo ao “controle remoto artificial”, que é a sociedade dominante, com seus dispositivos disciplinares. Nota-se a partir desta frase o seu discurso simbólico e objetivo, longe de não fazer sentido ao mundo em que vivemos:




Tem várias Estamiras. Ninguém pode viver sem a
Estamira. Sinto orgulho e tristeza por isso.







Marcos Prado parece também perceber o objeto de seu filme como sujeito do mesmo, entendendo que esta interpretação sobre sua personagem real é o seu principal elemento de confrontação. Ao contrário de Walter, que percebe a necessidade de criar situações de confrontação durante os sete dias de convívio com Moacir – como a aparição do artista plástico Siron Franco, visivelmente narrada no filme pelo incômodo que sua presença causa a Moacir; ou como a transmissão de um programa de leilão de quadros de pintura ao qual Moacir assiste com um olhar indecifrável[4] – Marcos Prado percebe que em seu filme não há o que provocar; Estamira é a própria provocação. E a provocação não parte dela para ela, mas dela para o cineasta e para o público. Sua oralidade discursa para um outro que somos nós, os seus telespectadores. Marcos Prado inverte, assim, o espelho de identidades do fazer cinematográfico.

Observa-se também no filme de Moacir um certo discurso provocativo:






Fica claro que esta cena do filme, onde Moacir desenha por sobre uma placa de vidro sobreposta às lentes da câmera, foi intencionada por Walter Carvalho. No entanto, existe aqui a dúvida quanto à existência de algum tipo de orientação do cineasta para Moacir a respeito do desenho que ele traça.[5] Em todo caso, a transnarratividade desta cena é simbolicamente muito forte: Moacir desenha por sobre os nossos olhos um burro montado em outro burro. Se essa simbologia foi descoberta durante o processo criativo da gravação do filme, ou se no processo de montagem, Carvalho formula através dela um discurso que parece dizer algo especialmente direcionado ao olhar cinematográfico e à sociedade que enxerga através deste olhar. Fica também bastante transparente nesta cena a idéia do objeto do olhar como sujeito deste olhar, construindo-se para a câmera e, ao mesmo tempo, construindo o próprio olhar da câmera. A transnarratividade desta cena nos transporta às malhas pré-concebidas da sociedade sobre as relações psicofísicas da ancestralidade afro-brasileira, através de um desenho de composições sobrenaturais (um animal com porte humano por cima de um outro animal), mas, ficando o prefixo “sobre” muito mais em relação à natureza social. Tendo sido feito ingenuamente por Moacir, ou não, a cena da construção deste desenho, de alguma maneira, nos provoca quando parece chamar de “burrice” humana o olhar impuro para o outro.

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[1] ANTONACCI, Maria Antonieta in: BUENO, Maria Lucia; CASTRO, Ana Lúcia (Orgs.). Corpo, território da cultura. / Organização de Maria Lucia Bueno e Ana Lucia de Castro. São Paulo: AnnaBlume, 2005, p.39.
[2] Id., Ibid., p.37.
[3] Id., Ibid., p.44-45.
[4] Após a entrega do primeiro tratamento deste trabalho, a resposta à entrevista elaborada durante a pesquisa para o montador do filme Moacir Arte Bruta, Pablo Ribeiro, chegou-me às mãos com informações a respeito deste episódio que fizeram fluir outras compreensões, sem que a afirmação de que Walter interfere na situação esteja equivocada. Pablo diz que “quem deu notícia sobre esse leilão de quadros na tv foi o próprio Moacir. Waltinho [Walter Carvalho] só filmou o Moacir ali, fazendo o que ele costuma fazer normalmente. Documentou” (entrevista recebida por correio eletrônico em 21/06/07). Esta novidade, apesar de negar a possibilidade de Walter ter criado uma situação inédita no cotidiano de Moacir, reforça a conclusão desta análise de que Moacir seja, tanto na vida quanto no filme, sujeito de si mesmo, aceitando as relações convergentes e divergentes entre o mundo externo e seu próprio mundo. Quando Moacir informa ao diretor do documentário de sua história sobre um leilão de quadros na tv, ele coloca-se, anteriormente à cena, como objeto fílmico capaz de construir a si próprio enquanto representificação. Moacir oferece subsídios à estrutura trans-narrativa do filme, prontamente aproveitados pelo diretor. Walter decifra o sinal co-criador de sua personagem e constrói uma cena de impressões diversas e aprofundadas no olhar de Moacir, que contudo permanece de caráter indecifrável para a cena.
[5] Na mesma entrevista, o montador do filme, Pablo Ribeiro, esclarece que o desenho não foi orientado pelo cineasta Walter Carvalho. A idéia do desenho partiu do próprio Moacir.
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2.2. NARRATIVA PSICO-SOCIAL DA EXCLUSÃO




Estudos que decorrem da anatomia figurativa do monstro pelos aspectos da mutilação e da deformidade física e psíquica, e da neurose social como fenômeno causado pelas carências e repressões trazidas com o circuito reagético das sociedades hierárquicas foram aqui interligados e formaram raciocínios de importante contribuição na análise atribuída a este sub-capítulo. Isto porque, no que diz respeito a ambos, a carência e a repressão compõem-se como a verdadeira essência das deficiências que caracterizam o corpo excluído, ou seja, o monstro social.

Segundo o artigo acadêmico de Eliane Robert Moraes, os principais estudos que compõem a anatomia do monstro formulam a idéia de que “o monstro descende do homem”[1], e que o motivo conseqüente desta anatomia é o fato de que a estes ‘seres diferentes’ falta algo de essencial, que seria a capacidade de abastecer-se das suas necessidades. Os estudos vistos por Moraes vão ainda mais longe quando acreditam que a definição do monstro aprofunda sua origem no corpo feminino, como podemos entender em sua conclusão analítica sobre as hipóteses genéticas de Aristóteles e Ambroise Paré:



A tópica nos remete novamente às relações entre monstros e a mutilação dos corpos. Paré conhecia a tese aristotélica de que a mulher é um homem mutilado, como omprovam suas citações do livro sobre a Geração dos animais. Considerando a supremacia do sêmen masculino na geração, Aristóteles concebe a forma ideal como reprodução idêntica de seu protótipo: quanto maior a distância do modelo original, maior será a imperfeição. O primeiro grau dessa diferença – que nos monstros chegaria ao estágio máximo – seria dado na formação de um indivíduo feminino ao invés do masculino. A anatomia da mulher revelaria, assim, uma realização inacabada da natureza e, embora necessária, imperfeita.[2]




Aristóteles e Paré formularam, assim, visões arrogantemente antropocêntricas, patriarcais, e uma série de questionamentos neste trabalho: o que faz do ser humano? Qual é a essência que caracteriza este ser e o difere dos demais seres? Seria mesmo a perfeição física e mental? O que é de fato a perfeição física e mental? Somente isto traduz o significado da perfeição? Existe então a perfeição? Sob quais critérios ela existe? Existe, de fato, a necessidade dela existir? E que necessidades humanas são essas que, incapazes de serem providas, fazem com que seja reconhecida no outro a figuração do monstro? Essas questões encontram-se bastante apropriadas aos filmes estudados e, por conseguinte, às críticas aqui trabalhadas dentro da perspectiva da anatomia do corpo social excluído.

Antes de entrar na análise das narrativas dos filmes, é necessário completar o raciocínio aqui proposto apresentando o estudo feito sobre a neurose social, a partir das “carências produzidas pela ação repressora”[3] no circuito reagético da sociedade.




A cada repressão corresponde uma carência, que lhe é específica, pois por ela gerada. Exemplificando, uma estrutura fechada, numa realidade evolutiva, é carente do evolutivo. Numa estrutura unidimensionada num ismo, a carência é o conteúdo excluído por este. O determinado e fixativo produz a carência no criativo e maleável e assim por diante.[4]




Segundo Sabbi, a carência das necessidades produzidas pelas repressões sociais é causador da alternativa neurótica[5] como modo de vida. O neurótico, em Karl Weissmann[6], exterioriza o conflito “por meio de sintomas mórbidos inofensivos à sociedade”, manifestando suas tensões “entre as pulsações inconscientes e as fôrças repressoras em sintomas neuróticos morbosos”.

Ora, de acordo com a anatomia do monstro, que diz que a este ser falta a essência que o descaracteriza, então, como ser humano “normal”, provedor de suas necessidades, as carências do corpo social corresponderiam às suas mutilações, e suas deformidades psico-sociais estariam relacionadas às repressões por aquilo que lhes é negado em seu meio social.

Passando a relacionar tal raciocínio com as relações psico-sociais de Estamira e Moacir, vejamos como os diretores Marcos Prado e Walter Carvalho representificam suas personagens reais.

Tomemos aqui as interpretações e confrontações interligadas sobre a paternidade e a maternidade de Moacir, como exemplo de uma inversão de valores, no que diz respeito a pontos de vista relativos à exclusão, sob o julgamento das deformidades e mutilações que correspondem à anatomia do monstro social: a mãe de Moacir demonstra-se sempre para a câmera como a mais sofrida e carente. Relata as “estranhezas” de Moacir desde a infância justificando-as pelo fato de ele não ter sido amamentado, de ter negado sempre o leite materno. O pai acolhe o filho com tranqüilidade e uma compreensão própria, sem a intenção de fazer dele um objeto catalisador de prosperidades materiais, como parece existir nas intenções da mãe, ao se auto-flagelar chamando-se de “pobre criatura” na presença do artista plástico Siron Franco, ou quando indigna-se dizendo ter mais amigos do que dinheiro na vida, na cena em que o jogador de loteria vai até a casa de Moacir para conferir sua aposta. A cena seguinte a esta do jogador de loteria é a do pai de Moacir dizendo que o filho merece tudo o que vem ganhando e ainda muito mais, “porque o coração dele é bom”[7], e que por conta disso é ele quem trata da mãe. E, durante a seqüência da visita de Siron Franco, carregada de pré-conceitos com o “artista bruto”, em nenhum momento, Moacir demonstra-se submisso, carente ou reprimido. Ao contrário, resiste às tentativas disciplinares de Siron de criar ali um ambiente amistoso e criativo.

A disposição transnarrativa percebida, intuída e ordenada por Walter Carvalho revela sutilmente ao telespectador outras margens de interpretação sobre aspectos da exclusão. No filme, ao contrário de ser Moacir, o 'perturbado por visões sobrenaturais', o objeto neurótico da exclusão, quem parece viver submetida às carências e às repressões sociais que classificam a neurose da exclusão é sua mãe, sempre tencionada à frente das câmeras, submetida ao desejo do mundo diferente da realidade deles. O filme parece dizer que não falta nada a Moacir. Ele não é o monstro social, ou o corpo excluído que, à primeira vista, pode parecer. Não é a sua deformidade física ou mental – se é que é justo chamar sua alteridade de deformidade, já que a questão contemplaria um outro estudo aprofundado a respeito – que pode julgá-lo assim. Este julgamento faz parte de uma visão estereotipada a seu respeito; aquela visão clássica da metanarrativa, bilateral, fechada, que obedece ao esquema da cultura reducionista. Walter Carvalho, com a transnarrativa que criou para contar a história de Moacir, mostra que sua personagem é provida de suas necessidades. Que entende a si mesmo e entende as relações com as quais precisa lidar com a sociedade. Que sobrevive de sua arte bruta, integrando hoje a ela as suas experiências externas sem perder a sua alteridade. Moacir é, pois, um sujeito excluído da exclusão.

Em Estamira, a coisa é um pouco diferente. Sua alteridade foi mesmo afetada pelas repressões e carências vividas ao longo de sua vida. As experiências sofridas pelo patriarcalismo violento da sociedade ao corpo feminino a transformaram, sim, num corpo social excluído. Sua performance vital é traumática e assustadora para quem não é Estamira, das várias que a própria comprova existirem em nossa sociedade – vê-se por seus próprios colegas de trabalho, os amigos de Estamira no lixão. Seus discursos a revelam, sim, como uma neurótica social, desprovida de suas necessidades humanas, e recomposta no espaço da monstruosidade subumana. No entanto, nada disso tirou-lhe a essência de sua condição humana. Ao contrário, fez com que esta essência fosse, de fato, despertada das malhas sociais. Os discursos de Estamira são carregados de verdade sobre as questões econômicas e sociais que vêm separando o ser humano de sua real natureza. Estamira não pode ser taxada de lunática quando diz:







Eu sou perturbada mas lúcida e sei distinguir a perturbação.

Se eu não desse conta de distinguir a perturbação não seria Estamira.

As mãe é formato par, e os ímpar é formato pai.

Isso aqui [o lixão] é feito de restos e descuidos.

A transnarrativa de Marcos Prado para contar a história de Estamira criou um discurso sobre o consumismo e a descartabilidade da vida humana. A oralidade de seu filme, mesmo não sendo discorrida somente por Estamira, é essencialmente dela. Ela própria se constrói como 'intérprete' de sua personagem, tencionando-se diante das câmeras: esbraveja discursos em dialeto próprio, paralisa-se em ponto fixo, faz caras, bocas e trejeitos. Marcos deixa que Estamira desenrole-se no papel de Estamira para montar em sua narrativa um discurso indireto livre, na tentativa de expandi-la não como objeto de decoração cinematográfica para os olhares distantes da realidade dura revelada em seu documentário, mas como uma constatação desconcertante da existência múltipla de verdades humanas opostas. O mais curioso de tudo é que, paradoxalmente aos seus discursos de exclusão naquele lugar, Estamira sente-se um ser empoderado no espaço onde vive, ou seja, sujeito de si mesma, capaz de gerir dali, dos restos e descuidos da grande sociedade carioca, a sua vida em harmonia. Estamira diz ali se sentir em casa.

Considerando todos estes argumentos, surgem duas posições que finalizam esta análise do filme: a primeira é a de que Estamira é, pois, um corpo social excluído deste nosso modelo de sociedade; a segunda posição é a de que esta sociedade é, então, um modelo excluído do verdadeiro sentido social da inclusão.

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[1] MORAES, Eliane Robert in: BUENO, Maria Lucia; CASTRO, Ana Lúcia (Orgs.). Corpo, território da cultura. / Organização de Maria Lucia Bueno e Ana Lucia de Castro. São Paulo: AnnaBlume, 2005, p15.
[2] Id., Ibid., p18.
[3] SABBI, Alcides Pedro. Agética da repressão reagética da liberdade. São Paulo: Ícone, 1986, p.20.
[4] Id., Ibid., p.21.
[5] Id., Ibid., p. 12.
[6] WEISSMANN, Karl. Psicanálise – ensaios e experiências. Rio de Janeiro: Livraria Freitas Bastos, 1967, p. 122.
[7] Fala própria do pai de Moacir.
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