domingo, 6 de abril de 2008

CAPÍTULO 1 - Sociedade sistemática, corpo disciplinado e a construção moderna do olhar

O paradigma moderno, cerne da formação e da crise atual da civilização global, é criador dos conceitos, dos métodos, das técnicas, das interpretações e das representações da apreensão do real e do conhecimento sob os quais vive a humanidade. Caracterizado pela centralização da racionalidade humana ao saber e controle das forças da natureza, este paradigma é herança do fenômeno sociológico de maior profundidade de atuação exercida sobre a atualidade: o Iluminismo, que consistiu num marcante esforço intelectual no campo das ciências objetivas, na Europa do século XVIII, para o conhecimento a fundo do cosmos universal.

A finalidade iluminista foi “o acúmulo de conhecimento gerado por muitas pessoas trabalhando livre e criativamente em busca da emancipação humana e do enriquecimento da vida diária”[1]. Assim, “o domínio científico da natureza prometia liberdade da escassez, da necessidade e da arbitrariedade das calamidades naturais”[2]. O triunfo da racionalidade, no entanto, marcou profundamente o destino da humanidade e do Planeta por um processo instrumental de separação do ser humano e da natureza que, paradoxalmente aos ideais ditos pelo Iluminismo, desencadeou, numa gradação até então irrefreada, os próprios males da escassez, da necessidade e das calamidades naturais a que se buscou controlar. Remetendo seu argumento à tese de Max Horkheimer e Theodor Adorno, o geógrafo inglês David Harvey diz haver “a suspeita de que o projeto do Iluminismo estava fadado a voltar-se contra si mesmo e transformar a busca da emancipação humana num sistema de opressão universal em nome da libertação humana.”[3]





A herança do Racionalismo e do Iluminismo inclui a crença na dominação da natureza pela humanidade através da indústria e da técnica. O ser humano é colocado arrogantemente não apenas no centro do universo e da natureza, mas é visto como um ser superior à natureza, todo-poderoso por virtude da sua razão e dos objetos que ela cria.[4]






A Criação de Adão, de Michelângelo (1511) . Obra renascentista - movimento ideológico precursor do Iluminismo.





À luz do Iluminismo, o eixo antropocêntrico da modernidade “desenvolveu sua concepção de um real racionalmente ordenado e do homem definido pela sua racionalidade”[5], resultando em uma construção histórica de organização da vida social e numa determinação da condição criativa do pensamento e ação humanas indissociáveis “das concepções ontológicas, epistemológicas e antropológicas que presidiram sua construção”[6]. Neste contexto reside não somente o paradigma moderno, mas a própria crise de seu “essencialismo racionalista e da teoria representacional do conhecimento”[7], que reduzem a capacidade criativa do ser humano e das organizações humanas.




... a ontologia racionalista e essencialista da modernidade é indissociável da perspectiva epistemológica que atribui à razão científica o monopólio nos processos de conhecimento. Esta perspectiva reducionista foi responsável pela produção de uma dupla e contraditória concepção sobre o homem e sua capacidade de conhecimento. De um lado, sustentou a afirmação de sua arrogância, afirmando sua capacidade de tornar-se dominador do real na sua totalidade. De outro lado, entretanto, mutilou a capacidade humana de conhecer, negando validade a múltiplas experiências de apreensão da complexidade do real.[8]




Este contraponto entre a capacidade humana de “dominar o real na sua totalidade” e a mutilação da “capacidade humana de conhecer” é um fenômeno energético possível num sistema social que canaliza a capacidade criativa do indivíduo e do coletivo em relações de causa e efeito, ou num “circuito reagético”, segundo a teoria elaborada pelo jurista Alcides Pedro Sabbi:




O circuito reagético tem como campo as estruturas da sociedade.
Tratando-se da ação e da reação, o circuito em vista é um processo energético. Os momentos e os resultados intermediários e finais terão necessariamente uma repercussão energética sobre todo o universo humano, tomado individual ou socialmente. Tudo, neste, se reflete sobre o todo, afetando a sua saúde. Desse modo, o homem será tratado como conteúdo energético; a estrutura, como instrumento de canalização energética na auto-realização do indivíduo e da sociedade.
[9]



Em Horkheimer e Adorno, este “circuito reagético” como processo energético de sobrevivência dentro da estrutura social pode ser compreendido noutras palavras que classificam a sociedade moderna como:





... uma espécie de contextura formada entre todos os homens e na qual uns dependem dos outros, sem exceção; na qual o todo apenas pode subsistir em virtude da unidade das funções assumidas pelos co-participantes, a cada um dos quais se atribui, em princípio, uma tarefa funcional; e onde todos os indivíduos, por seu turno, estão condicionados, em grande parte, pela sua participação no contexto geral.[10]


Assim, a sociedade sistemática que caracteriza a modernidade condiciona os seus dispositivos disciplinares aos corpos sociais, individuais e coletivos, como indispensáveis à vida em si. O circuito reagético, ou seja, a relação ação-reação, causa-efeito, é funcional na sociedade através de dispositivos disciplinares de participação e controle das potencialidades do indivíduo, contendo em si a opressão e a repressão como forma de mutilação dessas potencialidades.

Os dispositivos disciplinares, resultados estratégicos do conhecimento ontológico, epistemológico e antropológico a que a sociedade moderna está arraigada, utilizam-se de conceitos e técnicas de observação e ordenação humana com fins fechados em si mesmos. Considero aqui a teoria do poder disciplinar da vigilância e da punição, elaborada por Michel Foucault, como modelo. Segundo a teoria atribuída à milícia, “o sucesso do poder disciplinar se deve sem dúvida ao uso de instrumentos simples: o olhar hierárquico, a sanção normalizadora e sua combinação num procedimento que lhe é específico, o exame”[11].




O exercício da disciplina supõe um dispositivo que obrigue pelo jogo do olhar; um aparelho onde as técnicas que permitem ver induzam a efeitos de poder, e onde, em troca, os meios de coerção tornem claramente visíveis aqueles sobre quem se aplicam. Lentamente, no decorrer da época clássica, são construídos esses "observatórios" da multiplicidade humana para os quais a história das ciências guardou tão poucos elogios. Ao lado da grande tecnologia dos óculos, das lentes, dos feixes luminosos, unida à fundação da física e da cosmologia novas, houve as pequenas técnicas das vigilâncias múltiplas e entrecruzadas, dos olhares que devem ver sem ser vistos; uma arte obscura da luz e do visível preparou em surdina um saber novo sobre o homem, através de técnicas para sujeitá-lo e processos para utilizá-lo.[12]


Pelo poder disciplinar nas milícias, ajudado por técnicas de vigilância, por este “jogo do olhar”, é possível entender que a ciência da observação traz em si, desde os tempos mais anteriores, uma intenção de poder sobre o observado, seja este poder o de apreender o conhecimento do real na natureza, seja o de apreender o conhecimento racional da condição humana. E é possível afirmar ainda que o cinema nasce de tais princípios científicos de observação.

O fenômeno das imagens em movimento é uma técnica que surge “na imbricação de uma série de pesquisas científicas que se bifurcaram. O cinema, evidentemente, foi se transformando num espetáculo, mas os seus primeiros anos foram marcados por pesquisas científicas e os primeiros teóricos do cinema foram de fato cientistas.”[13] É nesta imbricação de pesquisas científicas e nos objetivos porque partiam estes cientistas que a história das ciências humanas e do cinema se confundem, como melhor explica Clarice Peixoto:





Os laços que unem a antropologia e o cinema, desde suas origens, nos incitam à reflexão sobre o desenvolvimento simultâneo destas duas disciplinas numa época em que a Europa e a América buscavam assegurar os mercados necessários à sua industrialização e às exigências de seu expansionismo econômico, manifesto, principalmente, pelas diversas invasões coloniais. É evidente que a antropologia é precursora do cinema enquanto reflexão teórica, mas é somente no final do século XIX que ela desenvolve uma metodologia voltada para o trabalho de campo, e isso se dá no mesmo momento em que missionários e aventureiros percorrem o mundo em busca de outras sociedades.[14]




O fato é que a antropologia visual é tida como a primeira experiência de um filme documentário, ou seja, um documento antropológico baseado na pesquisa e na coleta de dados audiovisuais captados pelas lentes de uma câmera cinematográfica, operada pelo pesquisador-observador, num processo de troca de olhares que vai “da observação à descrição, da inventividade à intuição, da distância à participação, do realismo sensível à reconstituição minuciosa”[15]. Este processo que constrói a narrativa sociológica no filme etnográfico é o método do olhar científico sobre o outro, desenvolvido numa época em que as ambições expansionistas da América e da Europa investiam e aprimoravam suas técnicas de exploração do mundo.




O cinema vem completar essa parafernália instrumental de coleta de informações criando, de certa maneira, um olhar mais objetivado. A imagem em movimento, aliada à capacidade de registro do som simultâneo, objetivava os relatos dos viajantes, suprimindo seu conteúdo emotivo, da mesma forma que ajudava a rememorar as situações vividas. Desse modo, as singularidades e as diferenças do outro eram registradas e transportadas no seu tempo e espaço. [16]



Faço aqui ainda uma reflexão dialética a respeito do olhar sistemático e disciplinar, para o mundo e para o outro, com que foi originalmente objetivada a parafernália instrumental do cinema em seu início de vida, relacionando-o ao procedimento técnico e objetivo da observação panóptica do modelo disciplinar analisado por Foucault:




Este espaço fechado, recortado, vigiado em todos os seus pontos, onde os indivíduos estão inseridos num lugar fixo, onde os menores movimentos são controlados, onde todos os acontecimentos são registrados, onde um trabalho ininterrupto de escrita liga o centro e a periferia, onde o poder é exercido sem divisão, segundo uma figura hierárquica contínua, onde cada indivíduo é constantemente localizado, examinado e distribuído entre os vivos, os doentes e os mortos – isso tudo constitui um modelo compacto do dispositivo disciplinar. A ordem responde à peste; ela tem como função desfazer todas as confusões: a da doença que se transmite quando os corpos se misturam; a do mal que se multiplica quando o medo e a morte desfazem proibições. Ela prescreve a cada um seu lugar, a cada um seu corpo, a cada um sua doença e sua morte, a cada um seu bem, por meio de um poder onipresente e onisciente que se subdivide ele mesmo de maneira regular e ininterrupta até a determinação final do indivíduo, do que o caracteriza, do que lhe pertence, do que lhe acontece.[17]















Ora, o princípio da captação objetiva das imagens pelas lentes de uma câmera cinematográfica pressupõe que estas imagens se desloquem para um “espaço fechado, recortado e vigiado em todos os seus pontos” por observadores que são desde o cineasta e sua equipe ao público das telas; as lentes da câmera operam como uma extensão técnica do olhar; e a intenção panóptica que há naturalmente no olhar cinematográfico concede ao cineasta “um poder onipresente e onisciente” para “a determinação final do indivíduo, do que o caracteriza, do que lhe pertence, do que lhe acontece” em seu material cinematográfico, através de uma ordenação dramatúrgica, de uma narrativa.


Esta proposição entre a observação no cinema e num campo disciplinar como o militar não é determinante, nem tão pouco deve ser levado ao pé da letra. Mesmo porque, nos termos da análise dramatúrgica, a visão panóptica, por “levar em consideração todas as partes ou elementos”[18], constrói uma visão multidimensional, complexa, criativamente aberta e subjetiva do cineasta, que marca a característica pós-estrutural e pós-moderna da narrativa no cinema, seja ficcional ou não ficcional. Este diálogo procura somente visualizar parentescos intencionais nas origens técnicas e objetivas do cinema e da observação do corpo social, por serem ambos os modelos construídos com base naquela mesma “ontologia racionalista e essencialista da modernidade”[19], nos caminhos ladrilhados pelo pensamento antropocêntrico racionalista e iluminista.



Não há como negar que a construção moderna do olhar como método de apreensão do real e da condição humana teve o advento da cinematografia como grande aliado. O cinema é nascido na sociedade sistemática, é um dispositivo técnico surgido através da lógica do paradigma moderno. O cinema contém em sua neutralidade de ação os princípios naturais da luminosidade, da visibilidade e da captação sonora, e acima disto o olhar ciente, dinâmico e objetivado do cineasta para o outro – aquele ou aquilo que se observa. Desta maneira, o cineasta já se coloca, e coloca também este outro, sob parâmetros de espelhamento de identificação, e havendo qualquer rachadura, qualquer ponto trincado neste espelho de identidades, é provável elevar-se para o cineasta a condição de normalizar, de excluir ou de multidimensionar os reflexos do outro encontrados; é este grau de poder que aprofunda a visão, percebe o outro, coleta dele o que viu e intui sua percepção a uma ordenação própria; esta ordenação – uma narrativa construída – nasce do processo criativo do cineasta em relação direta e indireta com o seu observado, e da intenção desejada pelo cineasta na relação deste observado com aquele que o assistirá.


Foto de Marcos Prado - Jardim Gramacho, Duque de Caxias-RJ

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[1] HARVEY, David. Condição Pós-Moderna. São Paulo: Edições Loyola, 6ª ed., 1996, p.23.
[2] Id,.Ibid.
[3] Id,.Ibid.
[4]ARRUDA, Marcos e BOFF, Leonardo. Globalização: desafios socioeconômicos, éticos e educativos: uma visão a partir do Sul. Petrópolis, Rj, Vozes, 2000, p. 11.
[5]PLASTINO, Carlos Alberto. Complexidade e Transdisciplinaridade in: ROTANIA, Alejandra e WERNECK, Jurema (org.). Sob o Signo das Bios: Vozes Críticas da Sociedade Civil. Nova Friburgo, Marca Gráfica e Editora, 2005, p. 26.
[6] Id., Ibid., p. 24.
[7] PLASTINO, Carlos Alberto, op. cit., p 26.
[8] Id., Ibid., p. 26-27.
[9]SABBI, Alcides Pedro. Agética da repressão reagética da liberdade. São Paulo: Ícone, 1986, p. 13.
[10]HORKHEIMER, Max e ADORNO, Theodor apud FIGUEIREDO, Eduardo Henrique Lopes. Crítica à teoria sistêmica da sociedade, PPGD-UFPR, Paraná, 2003, p. 139.
[11] FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: nascimento da prisão; tradução de Raquel Ramalhete. Petrópolis, Vozes, 32ª ed., 1987, p. 143.
[12] Id., Ibid., p. 143-144.
[13] DA-RIN, Sílvio. In: MONTE-MÓR, Patrícia e PARENTE, José Inácio (org.). Cinema e Antropologia: Horizontes e Caminhos da Antropologia Visual. Rio de Janeiro, Interior Produções, 1993, p. 19.
[14]Id., Ibid.
[15]PEIXOTO, Clarice in: MONTE-MÓR, Patrícia e PARENTE, José Inácio (org.). Cinema e Antropologia: Horizontes e Caminhos da Antropologia Visual. Rio de Janeiro, Interior Produções, 1993, p.10.
[16] Id., Ibid, p. 12.
[17] FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: nascimento da prisão; tradução de Raquel Ramalhete. Petrópolis, Vozes, 32ª ed., 1987, p.163-164.
[18] Dicionário Eletrônico Houaiss.
[19] PLASTINO, Carlos Alberto, op. cit., p. 26.


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1.1. A NARRATIVA CINEMATOGRÁFICA COMO MÉTODO CRIATIVO DO OLHAR

A idéia de narrativa contemplada neste trabalho parte do princípio de que “qualquer objeto já é um discurso em si. É uma amostra social que, por sua condição, torna-se um iniciador de discurso, de ficção, pois tende a recriar em torno dele (mais exatamente, aquele que o vê tende a recriar) o universo social ao qual pertence.”[1] Portanto, as reflexões que aqui seguem são alicerçadas por argumentos, proposições, indagações e consensos originados de estudos tanto da antropologia visual e do cinema documentário quanto do cinema de ficção, e também da própria dramaturgia clássica, que dialogam com esta condição.

Por definição, o narrativo é extra-cinematográfico, pois se refere tanto ao teatro, ao romance quanto simplesmente à conversa cotidiana: os sistemas de narração foram elaborados fora do cinema e bem antes de seu surgimento.[2]


A construção aristotélica dos gêneros literários é o preciso discurso narrativo na condição de representação do pensamento e da ação humana na sociedade. O épico, o lírico e o drama são como “arquiformas literárias”[3] da vida em sociedade, que é caracterizada, assim como na mimese[4], por ações e situações sucessivas, por conflitos internos e externos provocadores e/ou conseqüentes dessas ações, e pelos seres sociais que têm suas vidas construídas a partir da sucessão das ações e dos conflitos, sempre em busca de uma finalidade, de um ponto de equilíbrio.

Neste seguinte raciocínio, é possível entender como uma clássica narrativa ficcional se molda aos processos sistemáticos da vida em sociedade:


A análise estrutural literária evidenciou que qualquer história, qualquer ficção, pode reduzir-se ao encaminhamento de um estado inicial a um estado terminal e pode ser esquematizada por uma série de transformações que se encadeiam através de sucessões do tipo: erro a cometer – erro cometido – fato a punir – processo punitivo – fato punido – benefício realizado.[5]


Este esquema narrativo clássico do erro, da punição e do benefício aproxima-se do diálogo, no início do capítulo, acerca da construção do olhar antropocêntrico, tanto para o universo quanto para o ser humano, como formador das construções científicas e artísticas da era moderna, incluindo aí o próprio surgimento do olhar cinematográfico. Nos remete também à teoria do circuito reagético, de Alcides Pedro Sabbi, como processo energético de ação e reação, de causa e efeito na sociedade, e ainda à teoria da vigilância e da punição, de Foucault, sobre os corpos sociais presos a espaços controlados pela observação. A narrativa clássica, no sentido deste esquema, reconstrói a sociedade em sua seqüência lógica e limitadora; é uma estrutura reducionista, que diminui o poder transformador e reflexivo da arte dramatúrgica ao mero caráter de imitação, de conformação relatada; uma simples metanarrativa.

O caráter de relato da narrativa, porém, é inevitável a qualquer modelo de narração, como nos mostra esta definição:



Narrar consiste em relatar um evento, real ou imaginário. Isso implica, pelo menos, duas coisas: em primeiro lugar, que o desenvolvimento da história esteja à disposição daquele que a conta e que, assim, possa usar um certo número de recursos para organizar seus efeitos; em segundo lugar, que a história siga um desenvolvimento organizado, ao mesmo tempo, pelo narrador e pelos modelos aos quais se adapta.[6]


Com isto, conclui-se que qualquer ordenação específica no cinema, seja de um filme ficcional ou não ficcional, relacionada a um determinado objeto ou objetivo que se quer representificar corresponde ao contexto de uma linguagem, de uma narratividade. Para que um filme, por exemplo, seja “plenamente não-narrativo”, é preciso que nele “não se possa reconhecer nada na imagem e que tampouco se possa perceber relações de tempo, de sucessão, de causa ou de conseqüência entre os planos ou os elementos”[7].

Mesmo em se tratando dos modos pós-estruturalistas de construção da imagem cinematográfica documental, os processos criativos que o fazem terminam por constituir formas e meios que configuram um relato do relacionamento do cineasta com o seu objeto observado.


Permanecendo o modo de ser essencial de um fenômeno e, conseqüentemente, com isso delineando o campo de ação humana, para o homem as materialidades se colocam num plano simbólico visto que nas ordenações possíveis se inserem modos de comunicação. Por meio dessas ordenações o homem se comunica com os outros.[8]



Pelas novas configurações no modo de se comunicar, o gênero documentário segue caminhos cada vez mais abertos em seus processos criativos de construção do olhar. É um olhar mais subjetivado e transdisciplinar, que valoriza a complexidade daquilo que vê e relaciona a visão a diversas interpretações do conhecimento sem reduzir o objeto, o outro, a formas preservadas por si mesmas, narradas por pedagogias conservadoras[9] de visão, como aquelas enraizadas na sociedade sistemática e disciplinar, as quais já foram discorridas neste capítulo.

Paulo Menezes[10], a respeito do olhar do cinema documentário, discorre sobre “narrativas ‘inventadas’, encenadas, construídas para o processo de constituição de conhecimento, sobre si e sobre os outros”[11], afirmando que “pensar-se um filme antropológico ou etnográfico implica pensar-se a pesquisa e a ética da verdade como critério básico de legitimação da fidelidade da informação ali contida”[12].

Fayga Ostrower, raciocinando sobre a criatividade e os processos criativos do ser humano, aponta a apreensão deste “modo de ser essencial de um fenômeno” e o conseqüente delineamento do “campo de ação humana” como um processo energético imprescindível a uma ordenação criativa mais experimental, mais livre das instituições e, principalmente, fiel ao conteúdo desse fenômeno.


Cada materialidade abrange, de início, certas possibilidades de ação e outras tantas impossibilidades. Se as vemos como limitadoras para o curso criador, devem ser reconhecidas também como orientadoras, pois dentro das delimitações, através delas, é que surgem sugestões para se prosseguir um trabalho e mesmo para se ampliá-lo em direções novas. De fato, só na medida em que o homem admita e respeite os determinantes da matéria com que lida como essência de um ser, poderá o seu espírito criar asas e levantar vôo, indagar o desconhecido.[13]


Esses “determinantes da matéria”, suas “possibilidades e impossibilidades”, ou seja, o modo essencial do outro como legitimidade da informação cinematográfica compartilham com a premissa colocada por Paulo Menezes da pesquisa e da ética da verdade na composição narrativa do cinema documentário antropológico. Quando estes fatores determinantes são compreendidos e admitidos, a inventividade, as confrontações, as interferências ficcionais do documentarista, ao contrário de deturparem a essência do outro que se observa, libertam a verdade do observado dos raciocínios fechados, hierárquicos e punitivos do pensamento.

Por todas essas questões discutidas, o propósito aqui não é analisar as narrativas de Estamira e Moacir Arte Bruta enquadrando-as forçadamente em modalidades cinematográficas porque isto seria limitar os diálogos sobre as estruturas e os objetivos narrativos destes filmes. Suas composições dramatúrgicas são observadas aqui como proposições criativas do olhar de seus respectivos diretores, em reciprocidade com o outro visto, por meios criativos e intersubjetivos de confrontação e interpretação, e representificando os aspectos deste processo por meio de ordenações estéticas, estruturais e objetivas construídas durante o processo.

O pesquisador de cinema Fernão Pessoa Ramos oferece um raciocínio de importante contribuição à linha de desenvolvimento desta análise:


No Brasil, reina de um modo difuso, mas uniforme, o discurso que reivindica a não especificidade do campo não ficcional. Nele podemos encontrar embutidos alguns pilares do pensamento contemporâneo de origem pós-estruturalista. A linha mais corriqueira deste raciocínio desenvolve-se dentro de uma postura que valoriza o desafio a normas estabelecidas. Negar o campo documentário equivale aqui a estabelecer uma ruptura. O documentário é visto como um campo tradicional, com regras a serem seguidas. Extrapolar estas fronteiras é um atestado de inventividade e criatividade. O logro que uma narrativa ambígua, eventualmente, pode pregar no espectador, serve como modelo. É interessante notar como este tipo de narrativa encontra-se no âmago da sensibilidade estética de nossa época, provocando uma espécie de atração irrefreável sobre o movimento de análise. Uma narrativa aparentemente documentária, que termina como ficção, seria a prova da impossibilidade de uma distinção analítica clara. Discutir fronteiras e definições surge como algo ultrapassado, pois reafirma a possibilidade de um saber que desloca, do centro da arena, o recorte analítico que gira em torno de variações sobre a fragmentação subjetiva (seja na análise, seja no discurso fílmico propriamente).[14]



A narrativa cinematográfica, com seus dispositivos de apropriação e desapropriação sobre a imagem tangível transposta a uma realidade intangível; com suas habilidades técnicas de inversão, fragmentação, extensão e tantas outras possibilidades de reincorporar, recriar e multiplicar tempos, espaços e corpos, reconstrói muito peculiarmente a realidade visível. A evolução da ciência ótica, a progenitora do cinema, se deu na história da humanidade em função das buscas por um conhecimento totalitário da natureza universal – do macrocosmo – e por um conhecimento totalitário da condição humana – do microcosmo. As ciências humanas originaram a narrativa cinematográfica documentária dentro de uma perspectiva totalitária do conhecimento humano, criando aí processos excludentes de relação nas sociedades dominantes com o outro observado. Em contrapartida, este mesmo olhar totalitário, sistemático e disciplinar das sociedades dominantes sobre o outro diferente fez nascer também – do próprio resultado da opressão e da repressão que delineiam outros corpos sociais como diferentes dos padrões sociais – um olhar mais livre e multidimensional na narrativa cinematográfica contemporânea, fiel à complexidade da condição humana, que é, ao mesmo tempo, única e comum ao eu e ao outro.

Que diferenças entre o eu objetivo e o outro objetivado são essas? Qual é a anatomia social do corpo excluído? Por que e para que a dramaturgia contemporânea da forma-documentário está sendo hoje atraída pela representificação do outro diferente? O próximo capítulo se dedica a estudar a anatomia social do corpo excluído nestas perspectivas dentro das narrativas criadas para contar as histórias de Estamira e Moacir: representificações de situações de exclusão características de sociedades como a do Brasil, historicamente desgastada pelo “olhar hierárquico”, e que tiveram suas vidas transportadas para dentro do campo de ação do cinema, sob olhares múltiplos de confrontação e interpretação.



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[1] AUMONT, Jacques et alii. A Estética do Filme. Trad. Marina Appenzeller. São Paulo, Papirus, 1995, p.90.
[2] Id., Ibid., p. 96.
[3] ROSENFELD, Anatol. O teatro épico. São Paulo: Perspectiva, 1985, p.16.
[4] BRANDÃO, Junito de Souza. Teatro grego: tragédia e comédia. Petrópolis, Vozes, 1984, p.13.[5] AUMONT, Jacques et alii. A Estética do Filme. Trad. Marina Appenzeller. São Paulo, Papirus, 1995. p.91.
[6] Id., Ibid., p. 92.
[7] Id., Ibid., p. 93.
[8]OSTROWER, Fayga, Criatividade e processos de criação. Petrópolis: Vozes, 1978, p. 33.
[9] SABBI, Alcides Pedro. Agética da repressão reagética da liberdade. São Paulo: Ícone, 1986, p.28.
[10] MENEZES, Paulo. Representificação: As relações (im)possíveis entre cinema documental e conhecimento. RBCS vol. 18, nº 51, fevereiro/ 2003.
[11] Id.,Ibid., p. 89.
[12] Id.,Ibid.
[13] OSTROWER, Fayga, Criatividade e processos de criação. Petrópolis: Vozes, 1978, p. 32.
[14] In Ramos, Fernão Pessoa e Catani, Afrânio (orgs.), Estudos de Cinema SOCINE 2000, Porto Alegre, Editora Sulina, 2001, pp.192/207.

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