sábado, 5 de abril de 2008

CAPÍTULO 2 - A anatomia do corpo social excluído na oralidade e na imagem das narrativas de Estamira e Moacir Arte Bruta.

As condições
cognitivas apresentadas nos filmes Estamira e Moacir Arte Bruta que estimularam o ponto de vista desta análise são formadas por uma relação mútua e transversal entre a imagem e a oralidade presentes nas produções. Os discursos daquilo que se vê e do que se ouve nos filmes, além de transparecerem-se como muito próprios das relações peculiares de vida de suas personagens reais, mesmo quando estimulados pelas interferências dos cineastas, seguem cursos imbricados e bastante funcionais como construções da realidade.

A fusão destes dois dispositivos de sensibilização (imagem e oralidade), possível pelo aparato técnico da montagem cinematográfica, pelas interpretações e confrontações dos cineastas e principalmente pela disposição espontânea dos corpos representificados nos filmes diante das câmeras possibilitou a existência de raciocínios transnarrativos, no sentido de insistir a percepção multidimensional sobre determinadas informações, à primeira vista, de caráter metanarrativo.

A prática da metanarrativa como é compreendida neste trabalho refere-se à construção clássica dos relatos da vida, como foi avaliada na última parte do capítulo anterior, visto que, tanto na sistematização da vida em sociedade quanto numa criação dramatúrgica – seja esta ficcional ou não ficcional – exista, de um lado, a inocência habituada da visão, ou de outro lado a sua “esperteza ao contrário”[1], ordenando ações, imagens e discursos referenciais a raciocínios convencionais. Por isto, ao invés de dizer aqui que as dramaturgias dos filmes em análise são invariavelmente metanarrativas da vida real, ou seja, simples construções dramatúrgicas que nada acrescentam e somente copiam passivamente o quê ou aquele que está diante das câmeras, é justo trabalhar a idéia da transnarratividade[2] nestes filmes por transportarem as possibilidades da condição humana de suas personas sociais representificadas a uma narrativa para além do raciocínio previsível, não necessariamente seguindo os moldes e as intenções convencionais, mas reconstruindo novas visões a partir de signos estabelecidos.

O caráter transnarrativo dos filmes em questão foi estudado e analisado a partir da seleção de alguns aspectos que aparecem neles com grande representatividade, direta ou indiretamente, construídas pela imagem e pela oralidade com peculiaridades que expressam diálogos sociais significantes sobre a anatomia do corpo excluído, ora delineando este corpo como monstro da exclusão ora como herói de um certo sentido de inclusão. Estes diálogos, como veremos a seguir, discorrem sobre as interpretações referentes à ancestralidade cultural afro-brasileira, às carências e às repressões sociais nas relações psicofísicas de exclusão das personagens.



O olhar

transnarrativo


é mútuo e transversal.


Foto de um fotograma da face de um pequeno indío, ou de uma pequena índia. (tirada por Márcia Shoo.)



__________________________________________
[1] Faço nestes termos uma alusão ao ponto de vista de Estamira sobre aqueles que detêm o controle do poder dominante na sociedade, ou que compactuam com esta forma de poder. No filme, Estamira diz: “Não tem mais inocente, tem esperto ao contrário.” Quando atribuo aqui a um cineasta o caráter de “esperteza ao contrário”, diferente de uma inocência habituada ao modo de vida dominante, quero dizer que este entende e concorda com um modo conformado de fazer cinema, contribuindo para a cristalização de raciocínios fechados, unilaterais. Este não parece ser o caso dos diretores em questão.
[2] O termo transnarratividade não foi encontrado em nenhuma das bibliografias estudadas. Ela formula-se aqui como um conceito nascido desta pesquisa, absorvendo para os termos da dramaturgia as características inerentes ao conceito da transdisciplinaridade como forma de busca do conhecimento plural.

________________________________________________________


2.1. NARRATIVA PSICOFÍSICA DA EXCLUSÃO



Estamira e Moacir, mulher e homem negros de vidas distantes e distintas dentro de uma mesma nação, porém traçadas por aspectos psicofísicos que os aproximam de pontos de vista sobre a exclusão, guardam forças ancestrais em seus corpos, mediadas entre a cultura e a natureza, que justificam a presença mútua e transversal da oralidade e da imagem em seus modos de sobreviver e de se comunicar. Essas forças, porém, quando externadas, provocam julgamentos marginalizados a seus respeitos.


No estudo de Maria Antonieta Antonacci sobre o desafio a verdades inscritas sobre os corpos negros de tradições africanas no Brasil, fala-se sobre a herança de “matrizes orais” e memórias “constituídas com ou sobre a natureza” que compuseram socialmente o corpo negro no Brasil como “arquivo vivo” de sua história.


Por diferentes caminhos, narrativas orais e visuais trazem lutas sem fronteiras em torno da liberdade, evidenciando que memória e corpo constituem-se, indissociavelmente, entre povos tributários de matrizes orais. Suas tradições, memorizadas em presença de corpos, materializam-se em diferentes gêneros não-verbais de narratividade inerentes à constituição dos corpos em arquivos históricos capazes de emitir ‘vozes do corpo’, prolongadas em artefatos de suas culturas.[1]





O que a dominância ocidental legou aos corpos negros na história os excluiu das aprendizagens e práticas do Ocidente como a escrita alfabetizada, por exemplo, além de ter criado intolerâncias cristalizadas direcionadas a estes povos, no que diz respeito à relação que têm com e sobre a natureza em seus rituais, seus costumes, suas manifestações, suas divindades.




Se a liberdade era representada por tempos de fala, fugas e silêncio evocam tempos de corpos paralisados. Intolerâncias culturais atravessaram o Atlântico encobrindo vozes no câmbio de corpos negros comercializados como despojos de guerra. Memórias, crenças, costumes navegaram em seus corpos e, estimulados em exílio, reinventaram modos de ser e de lutar em terras estranhas onde ‘a língua cresceu novamente mas a macacaria continuou silenciosa’, para ouvidos culturalmente desafinados.[2]


A presença das divindades como força sobrenatural, e da natureza animal e vegetal confluindo na cultura dos corpos negros foi incorporada à cultura dominante ocidental por malhas pré-conceituosas, folclóricas e estereotipadas, atribuindo a estes povos enfermidades psíquicas e corporais em detrimento de sua alteridade.


Para além da fúria sobre corpos rebelados a imposições escravistas por homens e mulheres dominados por avidez material e moral de práticas mercantis, deixou sentir flagelações corporais, martírios psíquicos, enfermidades culturais que impuseram profundas cicatrizes ao corpo nação Brasil. Castigos e perversidades advindos de guerras culturais trazem problemáticas de estudo sobre formas e significações históricas deste confronto sem fronteiras entre corpos e mentes de distintas e radicalmente opostas culturas e civilizações. Questões prementes para nossas sociedades nascidas do pecado original de processos colonizadores de potências européias.[3]


Passando agora a relacionar estes estudos com a “arte bruta” representativa das visões sobrenaturais e animalizadas de Moacir, e com os discursos que residem tanto nas interpretações orais da família e da comunidade com as quais ele convive, como também na narrativa desabafada, de invocações sobrenaturais e expressões corporais animalizadas em Estamira, é possível perceber nos filmes canais transnarrativos que situam a força ancestral da história e da cultura dos corpos negros brasileiros nas expressividades audiovisuais selecionadas. Existem aspectos sofridos, devido ao inevitável nascedouro escravista de suas condições econômicas e sociais, mas há também um discurso maduro e de aprendizado na maioria deles. Veja-se nesta interpretação do pai de Moacir sobre os desenhos e as visões “estranhas” do filho:








A compreensão dele eu não tenho e a minha ele não tem. A minha compreensão é de outro tipo, a dele é outra. O que eu faço ele não faz, o que ele faz eu não faço.



Ou nas seguintes falas de Estamira, ditas no espaço degradante da descartabilidade urbana, de onde dá rumos suburbanos à sua vida:







As doutrina errada, trocada, ridicularizou os homens.

A Isabel soltou eles e não deu emprego aos escravos, passam fome, comem qualquer coisa igual aos animal, não têm educação, é muito triste.

Isso aqui são escravos disfarçados de libertados.






Nota-se por estes discursos do pai de Moacir e de Estamira duas distintas percepções sobre a exclusão, lembrando nestas os aspectos históricos, culturais, econômicos e sociais da corporeidade afro-brasileira. Na primeira percepção, visível na oralidade do pai de Moacir, há um respeito natural e inquestionável sobre a alteridade do filho; existe uma visão valorosa da subjetividade da condição humana, desprovida das malhas que apontam o rótulo da exclusão. Durante todo o filme, o pai de Moacir interpreta o caráter “sobrenatural" e "animalesco” da psique de Moacir como possibilidade inquestionável da individualidade humana, mesmo dizendo isto de outra maneira, inocentemente. Na segunda percepção, a partir da oralidade de Estamira, a inocência é indubitavelmente substituída pela experiência própria da exclusão, de quem vive o legado de uma sociedade fabricante da exclusão. A ancestralidade corpórea que invoca o poder “sobrenatural” da psique e também a presença da natureza animal culturalizada nas partituras físicas de Estamira manifestam-se traumaticamente; o teor “assombroso” com que Estamira se expressa, reforçado pelas imagens selecionadas por Marcos Prado – os fenômenos meteorológicos do relâmpago, da chuva torrente, os cadáveres despejados como lixo, o acinzamento do céu cortado pelo sobrevôo dos urubus – constroem a anatomia social da exclusão de Estamira.

Em Moacir, a convivência com sua corporeidade física e psíquica não demonstra ser sofrida, traumática. Ao contrário, a condição de sua corporeidade é o objeto próprio de seu sentido de inclusão, de sua construção de vida como sujeito de si mesmo, e não como objeto de visões deturpadas a seu respeito. Walter Carvalho parece entender isto, e constrói esta transnarratividade pelos elementos naturais (animal e vegetal) que compõem os arredores de sua personagem real: a presença do gato e do cachorro, a todo momento, acompanhando fielmente o companheiro Moacir; a sonoridade ambientada unicamente por cantos de pássaros na cena em que ele pinta a face do diabo numa placa de ferro; a fotografia de cenas que ressaltam a beleza mística do município de Alto Paraíso, ao mesmo tempo, fazendo disto uma alusão à mística da condição humana e da arte bruta de Moacir, como nas imagens iniciais do filme, por exemplo, onde uma flor solitária e exótica é iluminada pelo cineasta, havendo por trás um céu de escuridão pura, não contaminado pela luminosidade urbana, apenas pela presença da lua.




Observa-se em Moacir Arte Bruta o simbolismo ancestral na construção da oralidade em depoimentos carregados de familiaridade com a cultura própria – uma cultura rural – como os do pai de Moacir, também nesta seqüência que ele conta ao cineasta Walter Carvalho e diante da câmera:







Quero muito que o senhor me explica um sonho que eu tive... esse guia sempre me acompanha toda a vida. Nós morava ali embaixo onde era a casa da Flor. Então... esse menino [Moacir] era pequeno. Aí um velho,
eu sentado numa cama alta... de frente virado prum velho lá, encostado na parede e o velho falou pra mim: ‘olha, você vive com o suor do seu rosto. Mais tarde não vai poder conviver com essa mulher’, que é a Maria [sua esposa, mãe de Moacir]. ‘No fim da sua vida você vai adquirir uma fortuna.’ Já não vi o velho mais naquela posição. Já via ele lá, acolá pra lá da rodagem. Montado a cavalo com chapéu de massa, acabanado no trote do cavalo e eu atrás, na carreira a pé, correndo atrás dele. Não virou mais pra mim pra falar nada. Falou: ‘me acompanha filho, quanto mais eu dou, mais eu tenho pra dar.’ Quem pode falar?







Ou mesmo nesta rima que criou ofertando para o filho Moacir, e que reproduz diante da câmera:




Bom dia Nonô, como é que você está? Se não tiver uma morena, vou caçar uma pra te dar. Eu quero um cômodo da sua casa pra mim alugar, pra mim encher de mulher pra mim namorar. Essa fita gravada é um presente que te dou. Eu já fui muito rapaz, agora tenho neto e sou avô. Morena bonita agora perto de nós chegou. Se você não tiver outra morena eu peço e te dou.












Os entrevistados em Moacir Arte Bruta apresentam interpretações variadas sobre os assuntos questionados por Walter a respeito de Moacir. Estas interpretações vão de acordo com o modo de convivência com o artista e com a compreensão de cada um sobre o que as figuras que ele vê e desenha representam. É interessante notar no filme a construção da “personagem Moacir” pelas experiências vividas por este na fala das pessoas: o senhor que, ao ser perguntado sobre como era Moacir quando garotinho, responde sem qualquer pré-conceito que ele era “do jeito que ele é: moreno”; ou o açougueiro que, buscando uma maneira de entender como Moacir é capaz de fazer o que faz, diz que o artista “vê a gente por debaixo da roupa”; as irmãs que dizem que os “capetins” e as genitálias desenhadas por Moacir passam uma "energia boa, positiva"; e o representante da casa cultural da comunidade, adornando com tendência filosófica e normalizadora o corpo social e a arte bruta de Moacir. O que eles contam está ordenado na narrativa do filme por assunto, e em raciocínios fragmentados, que vão se completando na seqüência das falas de cada um. Nesta sistemática, porém, ao invés de se formar um único e extenso raciocínio sobre cada assunto, a montagem faz com que o raciocínio se ramifique a vários, de acordo não somente com o ponto de vista dos entrevistados, mas do próprio olhar interpretador e confrontador de Walter, e da conseqüente janela que este olhar abre à visão do telespectador.

Em Estamira, a oralidade transnarrativa do filme é toda construída por ela. Tanto que os depoimentos dos outros entrevistados, seus filhos, parecem não ter força de confrontação sobre a verdade de Estamira. São depoimentos carregados de malhas religiosas, pré-conceituosas, julgadoras de sua “loucura”; o olhar dos filhos para Estamira é um olhar disciplinar, vigilante e punitivo. Vê-se por esta fala de sua filha mais velha, criticando o desejo de liberdade de Estamira em oposição a uma vida terminada num manicômio, à base de drogas dopantes:








Ela prefere viver 2 anos livre do que cinco bem,
trancada num local.





Marcos Prado entrega (simbolicamente) a câmera nas mãos de sua personagem real. O próprio chamado ao filme foi feito por Estamira, dizendo anteriormente à produção do documentário que a missão do cineasta é revelar a missão dela. A narrativa do filme é transcorrida por ela; com isto, Marcos Prado liberta-se e, ao mesmo tempo, liberta a pré-visão do telespectador para construir um filme “menos seu” e mais de Estamira. É um discurso onde o sujeito é o próprio objeto. Estamira reconhece-se enquanto objeto de um olhar cinematográfico, e constrói-se a partir daí como sujeito deste olhar. Enxerga-se como símbolo da exclusão e da descartabilidade humana; um ser regido pelo “controle remoto natural” do universo – como ela própria diz – sobrevivendo ao “controle remoto artificial”, que é a sociedade dominante, com seus dispositivos disciplinares. Nota-se a partir desta frase o seu discurso simbólico e objetivo, longe de não fazer sentido ao mundo em que vivemos:




Tem várias Estamiras. Ninguém pode viver sem a
Estamira. Sinto orgulho e tristeza por isso.







Marcos Prado parece também perceber o objeto de seu filme como sujeito do mesmo, entendendo que esta interpretação sobre sua personagem real é o seu principal elemento de confrontação. Ao contrário de Walter, que percebe a necessidade de criar situações de confrontação durante os sete dias de convívio com Moacir – como a aparição do artista plástico Siron Franco, visivelmente narrada no filme pelo incômodo que sua presença causa a Moacir; ou como a transmissão de um programa de leilão de quadros de pintura ao qual Moacir assiste com um olhar indecifrável[4] – Marcos Prado percebe que em seu filme não há o que provocar; Estamira é a própria provocação. E a provocação não parte dela para ela, mas dela para o cineasta e para o público. Sua oralidade discursa para um outro que somos nós, os seus telespectadores. Marcos Prado inverte, assim, o espelho de identidades do fazer cinematográfico.

Observa-se também no filme de Moacir um certo discurso provocativo:






Fica claro que esta cena do filme, onde Moacir desenha por sobre uma placa de vidro sobreposta às lentes da câmera, foi intencionada por Walter Carvalho. No entanto, existe aqui a dúvida quanto à existência de algum tipo de orientação do cineasta para Moacir a respeito do desenho que ele traça.[5] Em todo caso, a transnarratividade desta cena é simbolicamente muito forte: Moacir desenha por sobre os nossos olhos um burro montado em outro burro. Se essa simbologia foi descoberta durante o processo criativo da gravação do filme, ou se no processo de montagem, Carvalho formula através dela um discurso que parece dizer algo especialmente direcionado ao olhar cinematográfico e à sociedade que enxerga através deste olhar. Fica também bastante transparente nesta cena a idéia do objeto do olhar como sujeito deste olhar, construindo-se para a câmera e, ao mesmo tempo, construindo o próprio olhar da câmera. A transnarratividade desta cena nos transporta às malhas pré-concebidas da sociedade sobre as relações psicofísicas da ancestralidade afro-brasileira, através de um desenho de composições sobrenaturais (um animal com porte humano por cima de um outro animal), mas, ficando o prefixo “sobre” muito mais em relação à natureza social. Tendo sido feito ingenuamente por Moacir, ou não, a cena da construção deste desenho, de alguma maneira, nos provoca quando parece chamar de “burrice” humana o olhar impuro para o outro.

____________________________________

[1] ANTONACCI, Maria Antonieta in: BUENO, Maria Lucia; CASTRO, Ana Lúcia (Orgs.). Corpo, território da cultura. / Organização de Maria Lucia Bueno e Ana Lucia de Castro. São Paulo: AnnaBlume, 2005, p.39.
[2] Id., Ibid., p.37.
[3] Id., Ibid., p.44-45.
[4] Após a entrega do primeiro tratamento deste trabalho, a resposta à entrevista elaborada durante a pesquisa para o montador do filme Moacir Arte Bruta, Pablo Ribeiro, chegou-me às mãos com informações a respeito deste episódio que fizeram fluir outras compreensões, sem que a afirmação de que Walter interfere na situação esteja equivocada. Pablo diz que “quem deu notícia sobre esse leilão de quadros na tv foi o próprio Moacir. Waltinho [Walter Carvalho] só filmou o Moacir ali, fazendo o que ele costuma fazer normalmente. Documentou” (entrevista recebida por correio eletrônico em 21/06/07). Esta novidade, apesar de negar a possibilidade de Walter ter criado uma situação inédita no cotidiano de Moacir, reforça a conclusão desta análise de que Moacir seja, tanto na vida quanto no filme, sujeito de si mesmo, aceitando as relações convergentes e divergentes entre o mundo externo e seu próprio mundo. Quando Moacir informa ao diretor do documentário de sua história sobre um leilão de quadros na tv, ele coloca-se, anteriormente à cena, como objeto fílmico capaz de construir a si próprio enquanto representificação. Moacir oferece subsídios à estrutura trans-narrativa do filme, prontamente aproveitados pelo diretor. Walter decifra o sinal co-criador de sua personagem e constrói uma cena de impressões diversas e aprofundadas no olhar de Moacir, que contudo permanece de caráter indecifrável para a cena.
[5] Na mesma entrevista, o montador do filme, Pablo Ribeiro, esclarece que o desenho não foi orientado pelo cineasta Walter Carvalho. A idéia do desenho partiu do próprio Moacir.
_____________________________________________


2.2. NARRATIVA PSICO-SOCIAL DA EXCLUSÃO




Estudos que decorrem da anatomia figurativa do monstro pelos aspectos da mutilação e da deformidade física e psíquica, e da neurose social como fenômeno causado pelas carências e repressões trazidas com o circuito reagético das sociedades hierárquicas foram aqui interligados e formaram raciocínios de importante contribuição na análise atribuída a este sub-capítulo. Isto porque, no que diz respeito a ambos, a carência e a repressão compõem-se como a verdadeira essência das deficiências que caracterizam o corpo excluído, ou seja, o monstro social.

Segundo o artigo acadêmico de Eliane Robert Moraes, os principais estudos que compõem a anatomia do monstro formulam a idéia de que “o monstro descende do homem”[1], e que o motivo conseqüente desta anatomia é o fato de que a estes ‘seres diferentes’ falta algo de essencial, que seria a capacidade de abastecer-se das suas necessidades. Os estudos vistos por Moraes vão ainda mais longe quando acreditam que a definição do monstro aprofunda sua origem no corpo feminino, como podemos entender em sua conclusão analítica sobre as hipóteses genéticas de Aristóteles e Ambroise Paré:



A tópica nos remete novamente às relações entre monstros e a mutilação dos corpos. Paré conhecia a tese aristotélica de que a mulher é um homem mutilado, como omprovam suas citações do livro sobre a Geração dos animais. Considerando a supremacia do sêmen masculino na geração, Aristóteles concebe a forma ideal como reprodução idêntica de seu protótipo: quanto maior a distância do modelo original, maior será a imperfeição. O primeiro grau dessa diferença – que nos monstros chegaria ao estágio máximo – seria dado na formação de um indivíduo feminino ao invés do masculino. A anatomia da mulher revelaria, assim, uma realização inacabada da natureza e, embora necessária, imperfeita.[2]




Aristóteles e Paré formularam, assim, visões arrogantemente antropocêntricas, patriarcais, e uma série de questionamentos neste trabalho: o que faz do ser humano? Qual é a essência que caracteriza este ser e o difere dos demais seres? Seria mesmo a perfeição física e mental? O que é de fato a perfeição física e mental? Somente isto traduz o significado da perfeição? Existe então a perfeição? Sob quais critérios ela existe? Existe, de fato, a necessidade dela existir? E que necessidades humanas são essas que, incapazes de serem providas, fazem com que seja reconhecida no outro a figuração do monstro? Essas questões encontram-se bastante apropriadas aos filmes estudados e, por conseguinte, às críticas aqui trabalhadas dentro da perspectiva da anatomia do corpo social excluído.

Antes de entrar na análise das narrativas dos filmes, é necessário completar o raciocínio aqui proposto apresentando o estudo feito sobre a neurose social, a partir das “carências produzidas pela ação repressora”[3] no circuito reagético da sociedade.




A cada repressão corresponde uma carência, que lhe é específica, pois por ela gerada. Exemplificando, uma estrutura fechada, numa realidade evolutiva, é carente do evolutivo. Numa estrutura unidimensionada num ismo, a carência é o conteúdo excluído por este. O determinado e fixativo produz a carência no criativo e maleável e assim por diante.[4]




Segundo Sabbi, a carência das necessidades produzidas pelas repressões sociais é causador da alternativa neurótica[5] como modo de vida. O neurótico, em Karl Weissmann[6], exterioriza o conflito “por meio de sintomas mórbidos inofensivos à sociedade”, manifestando suas tensões “entre as pulsações inconscientes e as fôrças repressoras em sintomas neuróticos morbosos”.

Ora, de acordo com a anatomia do monstro, que diz que a este ser falta a essência que o descaracteriza, então, como ser humano “normal”, provedor de suas necessidades, as carências do corpo social corresponderiam às suas mutilações, e suas deformidades psico-sociais estariam relacionadas às repressões por aquilo que lhes é negado em seu meio social.

Passando a relacionar tal raciocínio com as relações psico-sociais de Estamira e Moacir, vejamos como os diretores Marcos Prado e Walter Carvalho representificam suas personagens reais.

Tomemos aqui as interpretações e confrontações interligadas sobre a paternidade e a maternidade de Moacir, como exemplo de uma inversão de valores, no que diz respeito a pontos de vista relativos à exclusão, sob o julgamento das deformidades e mutilações que correspondem à anatomia do monstro social: a mãe de Moacir demonstra-se sempre para a câmera como a mais sofrida e carente. Relata as “estranhezas” de Moacir desde a infância justificando-as pelo fato de ele não ter sido amamentado, de ter negado sempre o leite materno. O pai acolhe o filho com tranqüilidade e uma compreensão própria, sem a intenção de fazer dele um objeto catalisador de prosperidades materiais, como parece existir nas intenções da mãe, ao se auto-flagelar chamando-se de “pobre criatura” na presença do artista plástico Siron Franco, ou quando indigna-se dizendo ter mais amigos do que dinheiro na vida, na cena em que o jogador de loteria vai até a casa de Moacir para conferir sua aposta. A cena seguinte a esta do jogador de loteria é a do pai de Moacir dizendo que o filho merece tudo o que vem ganhando e ainda muito mais, “porque o coração dele é bom”[7], e que por conta disso é ele quem trata da mãe. E, durante a seqüência da visita de Siron Franco, carregada de pré-conceitos com o “artista bruto”, em nenhum momento, Moacir demonstra-se submisso, carente ou reprimido. Ao contrário, resiste às tentativas disciplinares de Siron de criar ali um ambiente amistoso e criativo.

A disposição transnarrativa percebida, intuída e ordenada por Walter Carvalho revela sutilmente ao telespectador outras margens de interpretação sobre aspectos da exclusão. No filme, ao contrário de ser Moacir, o 'perturbado por visões sobrenaturais', o objeto neurótico da exclusão, quem parece viver submetida às carências e às repressões sociais que classificam a neurose da exclusão é sua mãe, sempre tencionada à frente das câmeras, submetida ao desejo do mundo diferente da realidade deles. O filme parece dizer que não falta nada a Moacir. Ele não é o monstro social, ou o corpo excluído que, à primeira vista, pode parecer. Não é a sua deformidade física ou mental – se é que é justo chamar sua alteridade de deformidade, já que a questão contemplaria um outro estudo aprofundado a respeito – que pode julgá-lo assim. Este julgamento faz parte de uma visão estereotipada a seu respeito; aquela visão clássica da metanarrativa, bilateral, fechada, que obedece ao esquema da cultura reducionista. Walter Carvalho, com a transnarrativa que criou para contar a história de Moacir, mostra que sua personagem é provida de suas necessidades. Que entende a si mesmo e entende as relações com as quais precisa lidar com a sociedade. Que sobrevive de sua arte bruta, integrando hoje a ela as suas experiências externas sem perder a sua alteridade. Moacir é, pois, um sujeito excluído da exclusão.

Em Estamira, a coisa é um pouco diferente. Sua alteridade foi mesmo afetada pelas repressões e carências vividas ao longo de sua vida. As experiências sofridas pelo patriarcalismo violento da sociedade ao corpo feminino a transformaram, sim, num corpo social excluído. Sua performance vital é traumática e assustadora para quem não é Estamira, das várias que a própria comprova existirem em nossa sociedade – vê-se por seus próprios colegas de trabalho, os amigos de Estamira no lixão. Seus discursos a revelam, sim, como uma neurótica social, desprovida de suas necessidades humanas, e recomposta no espaço da monstruosidade subumana. No entanto, nada disso tirou-lhe a essência de sua condição humana. Ao contrário, fez com que esta essência fosse, de fato, despertada das malhas sociais. Os discursos de Estamira são carregados de verdade sobre as questões econômicas e sociais que vêm separando o ser humano de sua real natureza. Estamira não pode ser taxada de lunática quando diz:







Eu sou perturbada mas lúcida e sei distinguir a perturbação.

Se eu não desse conta de distinguir a perturbação não seria Estamira.

As mãe é formato par, e os ímpar é formato pai.

Isso aqui [o lixão] é feito de restos e descuidos.

A transnarrativa de Marcos Prado para contar a história de Estamira criou um discurso sobre o consumismo e a descartabilidade da vida humana. A oralidade de seu filme, mesmo não sendo discorrida somente por Estamira, é essencialmente dela. Ela própria se constrói como 'intérprete' de sua personagem, tencionando-se diante das câmeras: esbraveja discursos em dialeto próprio, paralisa-se em ponto fixo, faz caras, bocas e trejeitos. Marcos deixa que Estamira desenrole-se no papel de Estamira para montar em sua narrativa um discurso indireto livre, na tentativa de expandi-la não como objeto de decoração cinematográfica para os olhares distantes da realidade dura revelada em seu documentário, mas como uma constatação desconcertante da existência múltipla de verdades humanas opostas. O mais curioso de tudo é que, paradoxalmente aos seus discursos de exclusão naquele lugar, Estamira sente-se um ser empoderado no espaço onde vive, ou seja, sujeito de si mesma, capaz de gerir dali, dos restos e descuidos da grande sociedade carioca, a sua vida em harmonia. Estamira diz ali se sentir em casa.

Considerando todos estes argumentos, surgem duas posições que finalizam esta análise do filme: a primeira é a de que Estamira é, pois, um corpo social excluído deste nosso modelo de sociedade; a segunda posição é a de que esta sociedade é, então, um modelo excluído do verdadeiro sentido social da inclusão.

__________________________________________

[1] MORAES, Eliane Robert in: BUENO, Maria Lucia; CASTRO, Ana Lúcia (Orgs.). Corpo, território da cultura. / Organização de Maria Lucia Bueno e Ana Lucia de Castro. São Paulo: AnnaBlume, 2005, p15.
[2] Id., Ibid., p18.
[3] SABBI, Alcides Pedro. Agética da repressão reagética da liberdade. São Paulo: Ícone, 1986, p.20.
[4] Id., Ibid., p.21.
[5] Id., Ibid., p. 12.
[6] WEISSMANN, Karl. Psicanálise – ensaios e experiências. Rio de Janeiro: Livraria Freitas Bastos, 1967, p. 122.
[7] Fala própria do pai de Moacir.
______________________________________________







Nenhum comentário: